Tenho andado com muito pouco tempo e disponibilidade para escrever, mas às vezes a energia suplementar que engana a escassez do tempo vem das pequenas irritações quotidianas. Se tropeçarmos nos cronistas do costume, é difícil evitá-las. O texto que comecei a escrever acabou por ficar longo, mas as coisas importantes têm de ser bem explicadas.
Ontem Santana Castilho continuou no "Público" a sua saga contra o Ministério da Educação em fascículos (mas será que ele já escreveu sobre mais alguma coisa?). Sobre o programa "Prós e Contras" realizado no passado dia 17 de Setembro na RTP1, o cronista escreve:
«Os cursos técnico-profissionais ocuparam boa parte da discussão. Joaquim Azevedo pôs o dedo na ferida quando os considerou pouco profissionalizantes e menos técnicos e quando alertou para o perigo de não passarem de mero expediente para mascar o insucesso escolar. Que belo trabalho jornalístico poderia ter sido feito, como abertura documental do debate: uma reportagem sobre as instalações e os recursos técnicos das escolas onde são ministrados, os equipamentos e os meios e materiais de ensino postos ao serviço dessa mistificação monumental da propaganda do Governo. Daqui a uns anos, veremos quantos meninos destes cursos arranjaram emprego. Provavelmente tantos quantos os adultos que mudaram de função ou saíram do desemprego depois de terem sido formados no âmbito das Novas Oportunidades.»
A aposta no ensino profissional tem sido uma das bandeiras deste Governo, que tem procurado não apenas alargar a oferta dos cursos no final do ensino básico e no ensino secundário – respondendo a uma procura por parte dos alunos e incentivando-os a ficar na escola, ou, o que vai dar ao mesmo, procurando evitar que eles abandonem a escola sem uma qualificação -, mas sobretudo trazer os cursos profissionais para o interior das escolas secundárias públicas, quando eles, desde a sua criação em 1988-1989, tinham ficado acantonados nas escolas privadas, mas financiados pelo Estado. Na mesa dos participantes do programa estava Joaquim Azevedo, doutorado em Ciências da Educação, actualmente Presidente do Centro Regional do Porto da Universidade Católica, ex-Secretário de Estado do Ensino Básico e Secundário em 1992, e Coordenador do recente Debate Nacional de Educação, entre outras coisas (consultar
http://www.joaquimazevedo.com/). Joaquim Azevedo é provavelmente a pessoa que mais pensou e escreveu sobre ensino profissional em Portugal, e tem sido um defensor do mesmo, apesar de crítico da forma como o Estado tem tutelado o raio de acção deste tipo de ensino nas escolas profissionais, limitando a sua oferta. Joaquim Azevedo é um defensor do aumento da oferta, mas sempre no sector privado. A título de exemplo, consulte-se o texto que assinou com Joaquim Goes para o famigerado "Compromisso Portugal" na área de educação (que pode ser encontrado
aqui em
powerpoint), onde a dada altura se lê que devia ser feita a
«[p]romoção de forma sistemática e proactiva do reforço da oferta do ensino profissional de cariz não estatal, de maneira a que o número de vagas se aproxime rapidamente da procura latente não satisfeita».
As dúvidas de Joaquim Azevedo são legítimas (explico à frente porquê), mas Santana Castilho, com seu estilo “caceteiro”, mostra que não percebe o objectivo da aposta no ensino profissional.
Em primeiro lugar, é muito importante perceber que o objectivo primeiro de um sistema de ensino profissional não é garantir um emprego imediato, mas sim contribuir para que os jovens cumpram a escolaridade obrigatória - ou seja, o 9º ano - e, se possível, o 12º.
Em segundo lugar, pretende-se melhorar a qualificação da população jovem, na linha de uma política nacional de qualificação e de
upgrade do
stock colectivo de competências. É que se objectivo fosse combater o desemprego a curto prazo, a melhor alternativa seria deixar os "putos" fora da escola - eles lá acabariam por conseguir os biscates do costume. Ou então, numa linha mais intervencionista (e mais cara), subsidiar esta mão-de-obra barata e desqualificada, pagando às empresas destes ramos (sob a forma de subsídios, benefícios fiscais, etc.) para quem mantenham estes jovens "ocupados". Mas qualquer destas soluções é facilitista, e não leva a lado nenhum, senão à reprodução do problema. Seria uma política de consumo de fundos que são destinados a algo que é um investimento: investimento em capital humano. É, para usar as categorias de
Hirschman, a hipótese de exit, não a da voice. É que, nesta linha de (in)acção, estes jovens vão durante toda a vida saber apenas trabalhar na construção civil, ou como
bouncers de discotecas, etc. E é precisamente isto que se pretende evitar, seja a nível individual, seja a nível colectivo.
Quando falo política nacional de qualificação e de
upgrade massivo do
stock colectivo de competências, falo de uma política que não tem nada a ver com soluções mágicas de curto-prazo. Essas, infelizmente, não existem; mais: a curto prazo, o que existe é, aliás, algo bastante mais negro: a tendência para a nossa economia se manter numa situação de equilíbrio de baixas competências, em que empregadores com negócios que exigem mão-de-obra desqualificada atraírem para fora da escola os jovens que assim ficarão sem qualquer qualificação; esta situação é de equilíbrio porque os dois lados alimentam-se mutuamente e dependem um do outro. Nenhum tem um incentivo para sair dele: os empregadores não vêem qualquer ganho em correr o risco para mudar de ramo e exigir mão-de-obra mais qualificada, quiçá mesmo assegurando alguma formação profissional daquela; nem os jovens têm qualquer incentivo, do lado das dinâmicas do funcionamento do mercado de trabalho, para ficar na escola, prosseguir os estudos, e conseguir qualificações. Estamos perante um problema de acção colectiva, uma armadilha sócio-económica, que exige a intervenção do Estado: o que o Estado tem que saber fazer é dar os incentivos correctos para que, de forma coordenada, empregadores e empregados alterem os seus hábitos e transformem aquele que é um círculo vicioso num círculo virtuoso.
O Estado corre dois riscos simétricos quando intervém nestas dinâmicas. Um é ficar demasiado longe e ser incapaz de influenciar as práticas dos empregadores, formando pessoas sem ter em conta as necessidades das empresas, que depois terão dificuldades na inserção concreta no mercado de trabalho. Esta será diagnóstico, em sentido lato, de Joaquim Azevedo, que duvidará da capacidade da escolas secundárias públicas ensinarem aquilo que os jovens precisam de aprender para trabalhar nas empresas. O outro risco é o inverso: o de o Estado ser capturado pelos interesses a curto prazo das empresas, que estão mais interessadas em servir-se dos financiamento e da mão-de-obra barata subsdiada pelo Estado do que numa estratégia de longo prazo de enriquecimento do
stock nacional de competências; o Estado só será capaz de conduzir uma estratégia de investinmento/produção de competências enquanto bens públicos (mesmo que impuros) se não se subjugar ao
short-termism das empresas, sobretudo quando são pequenas, vivem com a corda na garganta, e não têm capacidade para, elas próprias, garantir formação profissional aos seus trabalhadores de forma contínua e, sobretudo, equitativa (dado que normalmente são sempre os mais qualificados que acabam por ter a oportunidade de aprender coisas novas). A melhor resposta às dúvidas legítimas de Joaquim Azevedo é que se as escolas públicas não sabem fazer tão bem como as escolas profissionais privadas - com a sua experiência acumulada e proximidade em relação às empresas -, então elas podem aprender. A aprendizagem institucional-organizacional é uma capacidade que muitas vezes desprezamos, mas que é perfeitamente exequível, nas condições correctas e com os recursos humanos adequados. Mais: o facto de envolver o sector público tem mais duas vantagens potenciais: uma real, outra simbólica. A real: permite ensinar os jovens conteúdos mais generalistas e mais importantes para a sua formação a média prazo, não inteira e directamente subjugados às necessidades das empresas. Assim, o sistema sueco de
vocational training funciona desta forma - isto é, é estatal - e capacita os jovens de conhecimento generalistas o suficiente para nao os circunscrever a um universo de competências excessivamente fechado e de difícil evolução/actualização. A simbólica: o facto de o ensino privado ter o monopólio do ensino profissional criava uma fronteira perversa, como se a escola pública estivesse deliberadamente desinteressada e alienada do mundo real do emprego, e como se só o ensino privado fosse capaz de compreender as dinâmicas e necessidades das empresas. Na medida em que isto se passa na realidade, isto necessita de ser mudado. Simbolicamente, esta divisão é perversa, e é preciso neutralizá-la.
Mas há uma terceira linha de acção em toda esta estratégia política, para além do objectivo de cumprimento da escolaridade obrigatória e de construção uma política nacional de aumento da qualificações da população jovem. É o de fortelecimento dos laços de cooperação e negociação construtiva entre o Estado, as escolas, as associações patronais e as associações sindicais, e este é o mais difícil, porque se trata de construir instituições duráveis e não apenas lançar medidas de política. Aqui se percebe como a expectativa fácil de que o ensino profissional vai aumentar/facilitar, automaticamente, o emprego dos mais jovens é infundada, e a crítica nela baseada demagógica. O ensino profissional tem esse potencial, sim, se o
policy mix for o correcto. Se isto fosse assim tão fácil, os países com tradição de ensino profissional - regra geral, o da Europa Continental e do Norte - teriam níveis de desemprego sistematicamente mais baixos que os que não apostam no desenvolvimento destes sistemas - regra geral, os de tradição anglo-saxónica. Mas isto não é verdade, porque as variáveis em jogo são imensas: uns têm desemprego relativamente baixo (os nórdicos), outro relativamente alto (os continentais, com o pormenor de a Alemanha ter um desemprego nas idades mais baixas inferior ao dos mais trabalhadores velhos, o que mostra a eficácia do seu sistema de estágios nas escolas e empresas, o conhecido por
dual-system gerido pelas empresas e pelos sindicatos, quase sem intervenção directa do Estado). O que o ensino profissional pode fazer é tornar funcional um espaço institucional de mediação entre os interesses públicos e privados, e entre estes, entre o capital e o trabalho, alimentando relações de confiança e cooperação entre todos os actores colectivos, e que permitam pensar em estratégia de longo prazo de formação/actualização de competências, modernização tecnológica, e construção/maturação de instituições do mercado de trabalho que fujam às regras que governam as transacções mercantis. Para isso acontecer, os actores colectivos têm de capacidade de organização, de representação e de intervenção sistemática. É isso que faz o força dos sistemas onde as relações corporatistas se mantiveram fortes, mesmo nos anos 90 de "revolta" do capital contra as regras de negociação colectiva em vários países (e, simetricamente, é isso que faz a fraqueza de Portugal); e é isso que pode criar mecanismos de absorção eficiente dos jovens moderada qualificados no mercado de trabalho, assegurando baixas de taxas de desemprego. Mas este desemprego jovem baixo é efeito do sistema de negociação laboral, não directamente do ensino profissional - embora este seja uma peça importante do
puzzle.
Portanto, repita-se as vezes que forem necessárias que o objectivo não é arranjar emprego a todo o custo; na nossa flexível economia informal, os jovens arranjá-lo-iam, muito provavelmente, do pé para a mão. O objectivo triplo, a ritmos diferentes, passa, antes, por
garantir o cumprimento da escolaridade obrigatória + construção uma política nacional de aumento da qualificações da população jovem + fortelecimento dos laços de cooperação e negociação construtiva entre o Estado, as escolas, as associações patronais e as associações sindicais. Isto demora tempo, exige competência e persistência dos agentes estatais, bem como a cooperação patronal e sindical na construção de laços de negociação conjunta dos problemas. Não se pede a empregadores ou a sindicalistas que sejam altruístas; apela-se apenas a essa atitude que dá pelo nome feliz de
enlightened self-interest.
No fim disto tudo, conclui-se que, pelo menos, se percebe perfeitamente o fundamento do cepticismo de Joaquim Azevedo: este é legítimo, porque tem um justificação técnica e ideológica, e, gostemos delas ou não, tem medidas de politica alternativas. Podemos discordar, mas é uma opção séria - é a opção de quem não quer "Estado a mais" na ligação entre a educação e o sector empresarial; é a opção do
PSD. Do outro lado, o que é que tem Santana Castilho senão aquela razão cínica que sempre acompanha os "Velhos do Restelo"?