Thursday, February 21, 2008

O futuro para além de Novembro

Depois de Obama ter ganho todos os Estados depois da Super Tuesday, vale a pena olhar para o futuro, e talvez para o desafio mais importante que o candidato Democrata terá que enfrentar a nível doméstico. Não vou dissertar sobre o estado das primárias; Obama leva uma vantagem não apenas nos delegados, mas naquilo que os pundits adoram referir como o m-o-m-e-n-t-u-m. As coisas estão difíceis para Clinton, que desde há uns dias parece ter apostado numa campanha sobretudo negativa – algo que, parece-me, não a levará a lado nenhum.
Mas a avaliação da situação fica para outra altura. Barack Obama e Hilary Clinton são, por razões diferentes, bons candidatos às primárias do partido Democrata, e qualquer um deles daria um muito bom candidato nas eleições de Novembro. O meu palpite, como já tentei explicar várias vezes, é que Obama é o candidato que mais possibilidades oferece ao partido de colocar na Casa Branca um Presidente de centro-esquerda. Mas isto é apenas um palpite, mesmo que mais ou menos sofisticado.
Olhemos, por uns momentos, para o futuro próximo. Num debate-tertúlia que decorreu na quarta-feira da semana passada no Instituto Franco-Português organizado pelo Le Monde Diplomatique e subordinado ao tema “Eleições Americanas”, os oradores perguntavam-se se a alternativa que os Democratas parecem oferecer a uma liderança Republicana não é, afinal de contas, "mais do mesmo". Ora, a alternativa, parece-me, não é difícil de entrever, ou só é difícil se não percebermos o que o projecto ideológico do GOP pretende a médio-longo prazo. Para um candidato do partido Democrata, o objectivo central só pode ser este: evitar que o extremismo conservador do GOP acabe com a viabilidade dos seus programas sociais centrais, da Social Security ao Medicare/Medicaid, e garantir espaço de manobra para introduzir outras medidas no futuro. Os sucessivos cortes de impostos que os ricos compraram a Bush e o delírio militarista da sua administração comprometem seriamente a médio prazo a sustentabilidade do Estado social norte-americano - que já está longe de ser o mais generoso quando o comparamos com outros países prósperos (o inverso é, aliás, a realidade).
As opções políticas em aberto são, portanto, estas: continuar o projecto Republicano cujo objectivo é "starve the beast" (isto é, o Estado), limitando radicalmente a sua dimensão para que qualquer aprendiz de libertário possa "drown it in the bathup", na expressão de Grover Norquist, um dos mais influentes ideólogos da extrema-direita económica norte-americana (sim, é "extrema-direita económica" com todas as letras); ou refundar a alternativa progressiva, assegurando a viabilidade dos programas do passado, e alargando o seu raio de acção no futuro.
É verdade que Obama e Clinton prometem uma série de medidas no plano social; as propostas concretas que apresentam agora não devem ser consideradas como definitiva, e que muita cross-fertilization pode acontecer no plano da policy se algum deles chegar à Casa Branca. A pergunta mais complicada é outra: como poderão eles pagar as suas promessas? Esta questão será absolutamente crucial num futuro debate com John Mccain e com extrema-direita económica americana. Como reduzir um défice que vai continuar a crescer não apenas durante a administração Bush, mas, tudo indica, num futuro próximo, dado que os reais efeitos dos tax cuts para os ricos só agora se vão começar a sentir? Esta foi, afinal, a grande estratégia/golpe de Bush & co.: a classe média recebia imediatamente o pouco dinheiro que os cortes nos impostos (em 2001 e 2003) lhe atribuiu – um truque que garantia o apoio imediato à polémica medida -, mas os ricos só agora é que começam a usufruir das verdadeiras e impressionantes vantagens do plano Republicano; o que significa que é agora, nos últimos anos desta década, que o efeito sobre as finanças públicas se tornará efectivamente explosivo.
Bill Clinton não teve medo, em 1992, de dizer durante a campanha que subiria os impostos nos escalões mais elevados de rendimento. Hoje isso parece incrivelmente mais difícil, e quem tentar algo semelhante terá que se confrontar com o mais elementar populismo da extrema-direita, que já anunciou que é contra qualquer futuro aumento, como um simples regresso aos níveis da era Clinton – que seria, dizem, o maior aumento de impostos da história do país: e necessarily so, dado que os cortes de Bush foram, simetricamente, os mais radicais alguma vez realizados por uma administração em Washington.

Alguns saltarão imediatamente para argumentar que este desafio é algo para o qual Hilary Clinton está mais preparada para enfrentar – ela, reza o mito, a combativa, corajosa e incansável defensora dos ideais Democratas. Estou menos certo da sustentabilidade deste argumento, menos pelas qualidades pessoais e políticas – hoje extraordinariamente inflacionadas, parece-me - da candidata do que parece ser a sua dificuldade em unir o país em torno de objectivos comuns, se eleita. Para tomar medidas impopulares, é preciso gozar de uma mobilização, de um crédito, de um carisma que, neste momento, só parece ao alcance de Barack Obama. É que, como lembra o editorial do insuspeito “The Economist” de há uns dias: «Anyone can get experts to produce policy papers. The trick is to forge consensus to get those policies enacted».
Ora, é claro que a linguagem de Obama é messiânica; é claro que ela é, num certo sentido, trans- ou mesmo anti-política; e é claro que ela é, a partir de um certo ponto, repetitiva e irritante. Mas achar que Obama só vale pelos discursos que profere é tão redutor e injusto como achar que Hilary só chegou onde chegou porque é a mulher do mais popular presidente norte-americano dos últimos tempos. Há outras coisas para além da imagem - como o voting record no Senado, onde Obama não só não fica nada atrás de Clinton na sua colocação à esquerda (aliás, demasiado à esquerda para "Bushistas" ortodoxos como Karl Rove), como não faz as cedências típicas de Hilary nos assuntos centrais, como os cortes de impostos – já para não falar na guerra (mas aqui, admito, havia condicionantes várias). Para mais, the proof is in the pudding: a mobilização política das massas – aquilo no qual Obama parece ser, para já, imbatível - nunca se fez em lado nenhum elencando aborrecidas medidas de policy; sempre dependeu de elementos trans- ou anti-políticos e, nos EUA, de preferência com uma retórica com raízes mais ou menos vagamente religiosas. A onda que Obama tem provocado no último mês e meio não escapa a ninguém na política americana. E a retórica política é, por definição, feita de sound bytes: Jimmy Carter ganhou apelando à “honestidade” do povo americano (oco, não é? Mas não sem sentido se pensarmos no que simbolizava Watergate na altura), e Bill Clinton, para além de curiosamente abusar da palavra “change” na campanha contra G.H.Bush, lançou o inesquecível ”É a economia, estúpido!” - básico, opaco e populista, claro, mas o suficiente para ressoar com as inquietações do americano médio (mais preocupado com a perda do poder de compra do que com a queda do Muro de Berlim e com a invasão do Koweit por Saddam Hussein e a consequente vitoriosa intervenção americana no Médio Oriente, eventos que faziam de Bush I um herói no mundo ocidental).
Desvalorizar a importância da retórica do Obama significa desvalorizar o facto de que uma campanha presidencial num país com o sistema eleitoral e com a cultura política dos EUA dificilmente podem ser ganhas com apelos ao self-interest – económico ou outro - de um grupo mais ou menos amplo de indivíduos (se fosse assim tão simples, é improvável que a working e a middle-class tivessem permitido aos Republicanos revolucionar a economia americana como o fizeram no último quarto de século).
O desafio com que se defrontam os Democratas não é a escolha entre a suposta “experiência” de Clinton e a “mudança” supostamente simbolizada por Obama; está entre a acomodação a uma situação insustentável a médio prazo do ponto de vista do financiamento das políticas sociais do Estado norte-americano e a coragem necessária para dizer que os super-ricos vão ter pagar o regresso da prosperidade partilhada. Mas esta não é só uma questão de coragem, como os mais zangados comentadores do lado Democrata – como Paul Krugman - parecem acreditar: é também uma questão de capacidade de mobilização da opinião pública e de criação de consensos amplos, trans-ideológicos e para além das coligações tradicionais, em torno de objectivos comuns. No fim da corrida das primárias Democratas vamos ver quem carrega este fardo.

5 comments:

CLeone said...

a questão é: Obama can't deliver. As expectativas são demasiado altas. Hilary é mais real (e realista num mau sentido, também, admito). O problema é que a despolitização da vida americana (são realmente menos dependente do governo que os europeus) conduz a campanha para domínios «pop» (como aquele confrangedor video uns posts atrás) que não permitem sequer pensar. CLinton, apesar do estúpido «é a economia...» foi um político com capacidade, quando foi eleito já tinha longo curriculo. Obama, nem se compara.
Sobre o debate do l'immonde diplomatique, o mais e o mesmo deviam dar que pensar a quem, por cá, é «acusado» do mesmo. É favor cf seu email. Abraço

Hugo Mendes said...
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Hugo Mendes said...

Que Obama não possa "deliver", não percebo, a sério, como se pode dizer isso com tanta certeza; com base em quê? Bill Clinton era governador de um estado como o Arkansas; apareceu uns anos antes da campanha de 1992 a dizer que o partido precisava de uma "alma" nova e com isso ganhou alguma popularidade interna; que experiência tinha do mundo político de Washington? Quase nenhuma, e pagou-o no plano da "universal health insurance" que nunca chegou a ser.
Quanto às expectativas em relação a Obama, elas podem estar inflacionadas numa parte do eleitorado; mas acho limitativo reduzir os que votam em Obama num bando de seguidor de promessas ocas. E vídeos como aqueles servem para captar eleitores; o problema de Clinton foi não ter feito nenhum como aquele; as campanhas servem, afinal, para mobilizar pessoas, não para discutir listas de complicadas medidas de policy. Parece-me foi que a campanha de Clinton achava que eram favas contadas e nao se preparou para a corrida à nomeação a sério. If anything, demonstrou alguma falta de competência e criatividade.
Mesmo que Obama não fizesse nada de notável na Casa Branca, só o facto de um negro ser eleito para o cargo seria uma mudança incrivel. E colocar um ponto final no ciclo das famílias e dos clãs na presidência também não seria completamente negligenciável.
Abraço

CLeone said...

De acordo quanto à mudança (mas uma mulher não seria tb?) e ainda mais quanto à questão dos clãs.
Sobre Clinton: o percurso dele no Arkansas foi muito mais duro (logo formativo) qe o trajecto senatorial de Obama, isso nunca vi niguem discutir. Claro que não bastou na questão do plano de saúde, mas e então? até aqui já essa questão serviu para diferenciar Clinton e Obama com preferência pela primeira...que de facto deve ter pensado que tinha a coisa garantida, concordo.
Quanto ao clip e à campanha: não é capaz do deliver por aquele discurso ser tudo para todos ao memso tempo, coisa que seria sempre impraticável, e mais aind quando a economia está dura. Nesse aspecto, a comparação com CLinton mostra as diferenças: apesar da baixaria do «stupid» ele focou um tema (a economia) e depois veio o resto. Em rigor, a questão acaba por ser esta: para que serve a campanha? ao contrário do que acabo de ler, eu acho que serve para discutir políticas, o que é e deve ser mobilizador, não para entretenimento. Como já escrevi várias vezes, os resultados não valem tudo e a publicidade (como o humor ou o sentimento) deve servir a política, não o contrário. É uma questão prudencial, como outras que já discutimos (p. ex., os efeitos perversos do apelo à denúncia na aplicação das leis).
abraço

xatoo said...

Bill Clinton não apareceu do nada, ou do Arkansas que (para nós) é quase a mesma coisa. Bill foi "sugerido" ao Partido por Sam Watson o patrão de uma pequena empresa de venda a retalho local, de quem Hillary era administradora. Essa empresa chama-se Wall-Mart e é hoje a primeira em vendas a nivel mundial. Coincidência? hum!? ou os politicos funcionam ao serviço dos decisores privados?

Como em Condoleeza Rice, ex-gestora da Exxon, num sistema anti-democrático por natureza, os serviços às empresas é que são os "consensos amplos,trans- ideológicos"
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