Thursday, June 12, 2008

O Estado social nas estratégias das esquerdas

Os últimos dias tem sido pródigos em escritos sobre as estratégias políticas da esquerda (Paulo Pedroso, Vital Moreira, João Rodrigues). Não vou entrar "de cabeça" no debate mas talvez valha a pena contribuir para ele de um outro ponto de vista menos óbvio e mais analítico.

Parto de uma constatação trivial: o Estado social só sobreviverá - ou, no nosso caso, só poderá expandir-se - com o apoio da grande maioria da população, o que se traduz numa configuração em que aquele traz benefícios à maioria (mesmo que diferencialmente distribuídos); e em que o seu recuo deixaria essa maioria a perder. É esta capacidade de responder a diferentes preocupações de diferentes grupos que pode sustentar o Estado social, mesmo que a sua legitimidade esteja assente mais no interesse individual do beneficiário do que num sentimento altruísta de solidariedade para com a sociedade.

É certo que, talvez mais mítica do que historicamente, o Estado social nasceu "à esquerda", mesmo que, com o tempo, se tenha alargado a todos (ou quase). Digo mais mítica que historicamente porque a diversidade de trajectórias que tiveram o seu início no fim do século XIX recomenda cautela a grandes generalizações - embora seja verdade que o modelo mais redistributivo, generoso e universalista tenha sido sem dúvida obra da esquerda social-democrata, na aliança entre o seu braço político (partidos com maioria parlamentar, absoluta ou não) e o seu braço sindical. Mas convém não esquecer que, cronologicamente, a primeira pedra do edifício foi lançada há cerca de 13 décadas na Alemanha pelo tudo menos progressista Bismarck.

Enquanto projecto construído - histórica ou miticamente - pela esquerda, o Estado social pôde, com a industrialização e a democratização das sociedades, ser aprofundado em boa medida pelo apoio do proletariado industrial, durante décadas a classe com maior peso eleitoral nas democracias ocidentais. Na maioria dos países europeus, hoje muito poucos destes pressupostos se verificam: nem o Estado social pode continuar a crescer sem controlo do ponto de vista orçamental, nem o proletariado industrial é um grupo demográfica e eleitoralmente maioritário, nem é o Estado social muitas vezes sustentado apenas pela esquerda, eleitoral ou governativa (embora também seja verdade que a direita tenha , probabilisticamente falando, mais tendências para se desfazer do legado histórico do que a esquerda)

Por outras palavras, o Estado social não tem, do ponto de vista eleitoral, um dono único que possa reclamar o seu indubitável monopólio - sendo que, como disse, em alguns países, é mesmo provável que isto nunca tenha sido assim de forma clara. Assim, a maior parte das despesas em protecção social vão para as pensões e para os sistemas de saúde - dispositivos que beneficiam a larguíssima maioria independentemente da sua lealdade ideológica, e que tendem a ser dificilmente reformáveis precisamente porque os que são os seus beneficiários actuais (bem como os seus futuros, aqueles que são mais jovens hoje) formam poderosos grupos de interesse em defesa do que são vistas como, e bem, conquistas históricas.

Por muitas dificuldades que estas configuração de apoio coloque à realização de reformas - tantas vezes necessárias - nos sistemas de protecção social, a existência destes grupos que têm uma lealdade a-ideológica ao Estado social - ou, se quiserem, um interesse pessoal na defesa dos seus benefícios - é provavelmente a melhor defesa contra o seu desmantelamento.

Uma das consequências disto é que uma esquerda que queira, ao mesmo tempo, defender, aprofundar e reformar o Estado social não ganha nada em se deixar embrulhar numa lógica discursiva que vê o Estado social como plataforma de resistência contra o "capitalismo", a "globalização" ou os "mercados". A maior parte das pessoas que defende os benefícios que o Estado social lhes trouxe não o faz contra o "neoliberalismo", contra os "patrões" ou contra a "tirania dos mercados". Defende-o porque este montou dispositivos que garantem alguma protecção e oportunidades de investimento individual e social, e porque aumentam o seu bem-estar - o que me parece perfeitamente natural, para além de legítimo (e, nalguns casos, defende-o mesmo porque vê neste um conjunto de alavancas institucionais para um crescimento económico potencialmente robusto e equitativo.)

O reforço da legitimidade do Estado social num mundo onde o proletariado industrial e a senso comum obreirista está ultrapassado passa por (de)mo(n)strar/explicar, política e pedagogicamente, às classes médias como e porque é que elas beneficiam (ou podem beneficiar), directa ou indirectamente, da protecção social. Nesse sentido, o Estado social - e os que os defendem e pensam - precisa de ter particular atenção ao que se passa ao centro. Uma fuga en masse das classes médias para o sector privado seria um sério golpe na sustentabilidade de um Estado social com serviços de qualidade.

Significa que um Estado social preocupado com as classes médias seria um Estado social mais residual? Mas então e o 'precariado', que ocupa uma espécie de no man's land, entre os pobres e a classe média estável - não trairia este maior residualismo as inquietudes legítimas de uma geração inteira? E não é este Estado social um edifício mais 'frio', despido de política e ideologia, e por isso incapaz de atrair mais apoios?

A resposta às 3 questões é: pelo contrário.

Primeiro, porque convencer o centro a entrar no Estado social só é possível aumentando a qualidade de serviços públicos universais; em caso contrário, as classes médias procurarão protecção no mercado privado. Segundo, porque essas mesmas instituições permitiriam responder às preocupações do tal precariado, dado que o acesso aos serviços públicos é, precisamente, independente daquilo que marca a sua condição precária: a dificuldade em estabilizar ligações contratuais sólidas e uma inserção durável no mercado de trabalho. Terceiro, que a linguagem de justificação do Estado social seja menos ideológica e politicamente quente está longe, nos nossos tempos, de ser um handicap. A maioria das pessoas não está interessada num Estado social que represente a "transição para o socialismo" (como representou para muitos durante várias décadas, na versão radical) que está em causa, nem sequer na "resistência ao capitalismo" (como representa para muitos hoje, na versão radicalmente conservadora). Se as políticas se decidissem em eleições onde o sufrágio estivesse limitado às elites intelectuais (e aos seus aprendizes e seguidores), para quem a política, as ideias e as convicções valem mais na sua vida mais do que a água para o corpo humano, este tipo de objectivos, estratégias e linguagem estaria sem dúvida apropriado. Mas o sufrágio é universal, e a maioria dos cidadãos pretende que a classe política encontre esquemas eficazes de protecção inteligente - não que se envolva em guerras teológico-políticas. As pessoas estão mais interessadas em saber como compatibilizar uma vida pessoal/familiar cada vez mais turbulenta com uma vida profissional cada vez mais competitiva; como ter condições para estabilizar uma relação pessoal, comprar uma casa, ser mãe e pai; onde deixar a criança quando se regressa ao trabalho; como evitar que a penalização por se decidir ser (sobretudo) mãe; como garantir os melhores cuidados aos pais idosos, etc., etc.. No fundo, como transitar entre pontos críticos da trajectória de vida sem cair em armadilhas de desqualificação, de pobreza, de desemprego, de inactividade, ou de descriminação face a colegas, mantendo baixos níveis de desigualdade que são os mesmos, afinal, que mantêm elevados índices de competição (e quem disse que a igualdade é sempre má para a competição?) e de qualidade.

Coisas pequenas quando comparadas com o universo intelectual dos grandes ideólogos, portanto. Aquelas pequenas coisas que enchem a vida das pessoas.

Resumindo, e independentemente da questão de que-esquerda-tem-que-se-virar-para-que-lado, um Estado social que não seja capaz de convencer, conquistar e incluir o centro será sempre um dispositivo institutional frágil. Agora atenção: convencer o centro não implica seguir políticas centristas. Implica antes perceber como é que o centro pode ser convencido que políticas de esquerda podem servir-lhe (o que é mais difícil do que parece). Mas também implica outras coisas: que se proponham/conduzam estratégias discursivas e políticas que não se dirijam, mesmo que implicitamente, apenas a pequenos nichos eleitorais; que se perceba que esse centro, ele próprio um conjunto de diferentes "centros", vive e pensa de forma diferente dos tais nichos, e que tanto o discurso como as políticas que procuram responder às preocupações desta maioria heterogénea devem ser inteligentes e não populistas, financeiramente sustentáveis/responsáveis e não segundo a lógica do toujours plus!, e guiadas pelo melhor que as políticas públicas nos podem dizer sobre o mundo e não pelo "ideologicamente correcto" misturado com a ignorância das tendencias empíricas mais elementares.

Falta o mais importante, talvez, à esquerda.

Implica que aceitemos que 'socialismo' e 'social-democracia' são, enquanto estratégias económico-políticas, coisas diferentes. Implica que o Estado (pós-)industrial deve consumir menos recursos que o Estado social. Implica que o objectivo da conquista dos meios de produção deve ser substituída pela optimização dos meios de redistribuição. Implica que aceitemos a destruição criativa Schumpeteriana, sempre complementada e compensada por formas de redistribuição criativa. Implica que se aceite a legitimidade da economia de mercado enquanto mecanismo (não-absoluto!) de coordenação societal, que pode e deve alimentar um capitalismo de bem-estar.

E implica - por fim, mas que condensa o essencial - que a luta pelo Estado social e contra as desigualdades não seja uma estratégia entrista para relançar, pela calada da noite, o mítico "socialismo".

Enquanto estas desconfianças da parte da esquerda-que-não-pode-alienar-o-centro em relação à esquerda-mais-interessada-em-não-alienar-a sua-própria-identidade-e-património-simbólico (e, já agora, o seu nicho eleitoral...), se mantiverem, qualquer acordo será sempre difícil.

9 comments:

CLeone said...

Não me preocuparia muito com entrismo, nem com a retórica de certo PS com a identidade. Nem os entristas pesam muito no BE nem os «verdadeiros socialistas que não de plástico» representam muito no PS.
Sore o resto: de acordo, mas como diz o JM Almeida, abordas isto de forma muito racionalista para delineares uma estratégia política (a do post é sobretudo intelectual). O que te faz devalorizar discursos como o de 10 de Junho do PR, falando da gaffe e não daquilo que nele é relevante, o apoio ao governo e à oposição democrática (concordo com o que dizes do Público, mas o teu post anterior sugerindo que aquilo tem um qualquer significado...). mas neste post estão pontos de referência.

Hugo Mendes said...

Pedro,

Escreveu:

“A defesa do bem-comum como objectivo último da política de Estado encontra-se essencialmente à Esquerda.”

Pois, discordo. É daqui que vem sempre a arrogância da esquerda. A direita defende também o bem-comum (bom, ok, não me refiro aos fundamentalistas da liberdade individual, para esse não há nada acima do indivíduo), simplesmente afirma que este deriva de forma agregada de mecanismos diferentes – individuais, no limite ‘egoístas’ – da esquerda. A mão invisível de Adam Smith é um mecanismo assente em comportamentos individuais mas que produz, segundo os seus defensores, maior bem-estar agregado. E é por isso que, para os seus defensores, a mão invisível é um mecanismo superior a outros mecanismos que implicam alguma forma de coerção ou associação não-mercantil.

“as propostas do BE ou do PCP são feitas grande parte das vezes na convicção de que beneficiam a grande maioria da população, não se destinando apenas aos "seus eleitorados"”.

Eu acredito pouco na bondade e convicção da maioria - atenção, não disse totalidade! - propostas do PCP e do BE, o problema deve ser este. E elas ressoam, efectivamente, nas franjas mais ideológicas do eleitorado. É o seu público de votantes ou potenciais votantes.

“Infelizmente, o discurso do Hugo cai sobremaneira no tipo de discurso tecnocrático segundo o qual há, "obviamente", apenas uma maneira "certa" de fazer as coisas. E o seu parágrafo que começa por "Resumindo" traduz exactamente essa visão, que tenta contrapor à "ideologia" a "razão" baseada em "factos" empíricos (…) Tudo isso resulta, no fundo, da aceitação de pressupostos básicos, que constituem não mais do que uma ideologia, tão "politicamente correcta" como qualquer outra.”

Neste post não referi – mas já o fiz muitas vezes nopassado, tneho que voltar ao tema – que a 'ideologia' é a forma errada de abordar estes problemas, que devem assumir uma tensão entre o pólo dos princípios normativos (que derivam da uma certa filosofia política) e dos conhcimento empíricos. A ideologia não serve nem um pólo nem o outro. É muito menos sofisticada e lúcida que o primeiro pólo, e tende a escolher selectivamente o que diz a realidade, no outro. Ou seja, não ajuda a pensar o que realmente defendemos, e como – e se temos possibilidade de – o aplicar, em função do que sabemos da economia e da sociedade. O ideólogo fica sempre bem com as suas certezas, e alimenta uma terrível ignorância e arrogância. E eu não tenho o objectivo de ser “politicamente incorrecto”. Nem “correcto”. É uma variável que me é completamente irrelevante.

Resumindo = 'filosofia política' + 'ciencias sociais' (diferente de 'ideologia')

"(...) Implica que o Estado (pós-)industrial deve consumir menos recursos que o Estado social.(...)"

A culpa é minha, provavelmente devia ter explicitado o que entendo por Estado (pós-)industrial e Estado social: o primeiro age por sistema na escolha – tantas vezes mais política do que económica - das empresas que acha que devem ganhar ('picking the winners'), mesmo que isso seja economicamente ineficaz e consuma imensos recursos ao Estado; o segundo reporta-se a todas as despesas na área social (transferências e serviços várips). Resumindo: quando digo “que o Estado (pós-)industrial deve consumir menos recursos que o Estado social” digo apenas que devemos investir mais dinheiro na protecção das pessoas do que na protecção de empresas ineficazes. O que disse, afinal de contas, já é aceite pela maioria. O seu comentário fica sem grande efeito, porque eu quero é substituir as despesas em áreas cuja eficácia é altamente discutível e aplicá-lo precisamente na área social.

“O que o Hugo parece propôr, no limite, é que as pessoas vendam a sua dignidade: estarem disponíveis para sacrificar ganhos sociais, como por exemplo maior controlo sob o que se passa no seu local de trabalho, por mais dinheiro. Essa não é a minha ideia do que consiste em defender o bem-comum. Mas, claro, os conceitos de bem-comum variam de pessoa para pessoa. O dinheiro para mim não tudo, nem, acho, para a maior parte das pessoas (o tal "centro").”

Não sei de onde retira esta conclusão. Não propus nada nesta área, nem no limite nem longe dele. Mas convém ter em conta saber que os conceitos de ‘bem comum’ e o valor do ‘dinheiro’ variam. Nem acho que variem muito entre mim e o Pedro, mas se variarem muito entre o que nós achamos e a larga maioria achar, o que fazemos? É esse o desafio da democracia, afinal.

«"Implica que aceitemos a destruição criativa Schumpeteriana, sempre complementada e compensada por formas de redistribuição criativa."

Não, não implica. Porquê? Mais uma vez, devem as pessoas sacrificar a sua dignidade por (eventualmente...) mais dinheiro (i.e. crescimento económico)?»

Nem a destruição criativa de Scumpeter significa apenas crescimento, nem o crescimento significa apenas dinheiro. O Pedro parece obcecado com a questão do dinheiro. Eu falo de questões muito mais vastas. Limitei-me a colocar a questão da necessidade imperiosa, no mundo de hoje, das economias serem inovadoras, e terem agentes para isso. A inovação implica empreendedorismo, capacidade de aceitação da mudança e de enfrentar o risco. Uma economia que não inova muito dificiilmente crescerá de forma sustentável, e sem crescimento não há bem-estar, no sentido mais lato, que resista. As coisas vão muito para além do dinheiro (e depois o economicista e o tecnocrata sou eu?)

“(Quase) toda a esquerda aceita hoje que o mercado tenha um papel relevante na esfera económica da sociedade. Mas de maneira nenhuma aceita que mecanismos de mercado, com a teia de relações de poder extremamente desiguais que gera, passem a reger o modo como as pessoas socialmente se relacionam entre si.”

Pedro, falei da “economia de mercado”, não falei de “sociedade de mercado” (como diria o Jospin). Era dos mecanismos entre os agentes económicos que queria falar. Nada mais. Se não ficou claro, devia ter ficado.

Hugo

Pedro Viana said...

"A direita defende também o bem-comum (...) simplesmente afirma que este deriva de forma agregada de mecanismos diferentes (...) a mão invisível de Adam Smith é um mecanismo assente em comportamentos individuais mas que produz, segundo os seus defensores, maior bem-estar agregado."

O que eu disse foi: "bem-comum como objectivo último da política de Estado". Esta defesa é, insisto, rara à Direita. Quando digo objectivo último, pretendo dizer que em princípio tudo se subordina a este objectivo. À Direita é quase sempre considerado que existem outros princípios que nunca poderão ser, em qualquer circunstância, subordinados à defesa do bem-comum, desde a liberdade económica e de herança aos princípios doutrinários duma qualquer Igreja. Podem argumentar que o "mercado livre" aumenta o bem-comum, mas isso é para eles secundário, e muitas das vezes apenas e simples propaganda político-ideológica necessária à sobrevivência num ambiente político em que, pelo menos formalmente, a maioria tem direito a decidir quem governa. E não faz sentido tentar isolar na Direita as suas franjas mais radicais como sendo não representativas. Historicamente, estas franjas mais ideológicas de Direita tiveram (e têem) um peso desproporcionado na definição das actuais políticas de Direita.

"Eu acredito pouco na bondade e convicção da maioria - atenção, não disse totalidade! - propostas do PCP e do BE, o problema deve ser este. E elas ressoam, efectivamente, nas franjas mais ideológicas do eleitorado. É o seu público de votantes ou potenciais votantes."

O mesmo poderia dizer então de todos os outros partidos. Ou acha que apenas certos partidos possuem públicos-alvo? E o que seria preferível, partidos que defendem ideias que sabem minoritárias, mas que nelas insistem por uma questão de princípio, ou partidos que defendem as políticas que forem necessárias para mais facilmente chegarem ao poder e assim satisfazerem as suas clientelas?...


"o pólo dos princípios normativos (que derivam da uma certa filosofia política) e dos conhcimento empíricos. A ideologia não serve nem um pólo nem o outro. É muito menos sofisticada e lúcida que o primeiro pólo"

Não percebo de todo qual é a diferença. Da wikipedia: "An ideology is an organized collection of ideas.(...)Implicitly every political tendency entails an ideology whether or not it is propounded as an explicit system of thought." Acho que o Hugo entretém-se a criar espantalhos, para em vez de argumentar contra os seus adversários políticos à Esquerda, os tentar menorizar tentando fazé-los passar por um bando de intransigentes avessos à lógica e à realidade.

"Resumindo = 'filosofia política' + 'ciencias sociais' (diferente de 'ideologia')"

Não deixa de ser estranho então que entre os investigadores nas ciências sociais se encontre talvez a maior proporção de pessoas ideologicamente conotadas com a Esquerda Radical entre toda as categorias sociais que se podem imaginar. Será que assim ficaram por causa dos "factos empíricos" que conhecem melhor do que ninguém, ou apesar deles?...

"Resumindo: quando digo “que o Estado (pós-)industrial deve consumir menos recursos que o Estado social” digo apenas que devemos investir mais dinheiro na protecção das pessoas do que na protecção de empresas ineficazes."

Quando é que o Estado Social em qualquer estado ocidental europeu alguma vez vez gastou uma parte significativa (digamos mais de 10%) a subsidiar empresas ineficazes?...

"eu quero é substituir as despesas em áreas cuja eficácia é altamente discutível e aplicá-lo precisamente na área social."

Em primeiro lugar, ninguém à Esquerda (hoje) discorda que é preferível apoiar pessoas directamente do que empresas ineficientes. Em segundo lugar, agora o Hugo apenas fala em transferir despesas de rubrica, não em diminuir os gastos totais do Estado, tal como dava a entender anteriormente. Se olhar para várias propostas do BE por exemplo, descobre que também aqui se acha que o Estado gasta mal e em coisas não prioritárias (tipo submarinos) em vez de gastar mais na área social.

"Não propus nada nesta área, nem no limite nem longe dele. Mas convém ter em conta saber que os conceitos de ‘bem comum’ e o valor do ‘dinheiro’ variam."

Suponho que o Hugo sabe que a ordem económica capitalista não gera "apenas" maior crescimento económico, mas tem associada uma série de consequências sociais que são anátemas para quem ache que relações de poder desiquilibradas são uma afronta à dignidade humana. Por isso, defender a ordem económica capitalista implica implicitamente defender a manutenção ou mesmo o crescimento dessas relações sociais onde a dignidade é correntemente calcada por quem manda.

"A inovação implica empreendedorismo, capacidade de aceitação da mudança e de enfrentar o risco."

Concordo, mas a inovação não implica necessariamente a destruição. A reconversão e a substituição são modos muito mais suaves, em termos sociais, de implemetar a inovação. Talvez seja apenas uma questão de semântica, e não discordemos tanto como isso, mas é preciso ter muito cuidado com os termos que se utilizam para não se acabar por sub-recepticamente defender uma imaginética de Direita.

"Pedro, falei da “economia de mercado”, não falei de “sociedade de mercado” (como diria o Jospin). Era dos mecanismos entre os agentes económicos que queria falar. Nada mais. Se não ficou claro, devia ter ficado."

Não é possível separar a esfera económica da social, ou da política. O tipo de relações económicas existentes numa sociedade vão ter um enorme impacto social (por exemplo sobre a desigualdade) e político (gerando por exemplo tentativas de apropriação dos mecanismos decisórios pelo poder económico), que não pode ser menosprezado. O Hugo parece fazê-lo. Parece acreditar que é possível conter o poder económico dentro da sua esfera. Não é possivel. E, claro, já não falo das próprias relações económicas numa economia de mercado capitalista, baseadas em relações de poder extremamente desiguais, sem qualquer relação com o mérito intrínseco de cada ser humano, e que por isso deviam merecer o repúdio de quem acha que os homens nascem iguais em direitos. Note-se que economia de mercado, em termos gerais, e economia de mercado capitalista são coisas distintas.

Hugo Mendes said...

Pedro, alguns pontos:

"E o que seria preferível, partidos que defendem ideias que sabem minoritárias, mas que nelas insistem por uma questão de princípio, ou partidos que defendem as políticas que forem necessárias para mais facilmente chegarem ao poder e assim satisfazerem as suas clientelas?..."

O que é preferível são partidos que sejam responsáveis e tenham ideias e uma estratégia para o país. O PCP e o BE, pela dimensão da sua clientela, têm estratégias a ela dirigidas, e a outras que possam convencer num dado momento de 'crise'. Partidos como o PS e o PSD são partidos de governo e têm de responder às maiorias. Os primeiros, porque não são partidos de Governo, estão numa posição em que existe um incentivo objectivo à irresponsabilidade das propostas; se eles passarem a disputar o mesmo eleitorado do PS perdem a sua identidade e o seu eleitorado predilecto para o vizinho do lado (como é lógico, o PCP e BE estão em competição directa). Um partido como o PS tem de atender às preocuações do país, o que funciona como um mecanismo disciplinador. É esta a diferença - e isto faz toda a diferença em termos de postura e estratégia.

«Da wikipedia: "An ideology is an organized collection of ideas.(...)Implicitly every political tendency entails an ideology whether or not it is propounded as an explicit system of thought." Acho que o Hugo entretém-se a criar espantalhos, para em vez de argumentar contra os seus adversários políticos à Esquerda, os tentar menorizar tentando fazé-los passar por um bando de intransigentes avessos à lógica e à realidade.»

Pedro, podemos estar a discutir o ano todo diferentes definições de "ideologia". A 'definição' que usei separava, de forma deliberada, a ideologia da filosofia política, que trata de princípios rigorosos, e das ciencias sociais, que analisam a realidade de forma rigorosa. A ideologia 'comum', naturalmente, tem alguma coisa dos dois elementos. Para mim são estas as duas dimensões esenciais; a ideologia normativamente confusa e mole e que vê o que da realidade apenas o que lhe interessa é para mim dispensável. Quato aos tais "bandos intransigentes", eles devem só existir na minha cabeça, de facto. Era tudo tão mais fácil.

"Não deixa de ser estranho então que entre os investigadores nas ciências sociais se encontre talvez a maior proporção de pessoas ideologicamente conotadas com a Esquerda Radical entre toda as categorias sociais que se podem imaginar. Será que assim ficaram por causa dos "factos empíricos" que conhecem melhor do que ninguém, ou apesar deles?..."

Tem algum estudo que mostre que a maioria dos investigadores sociais está com a esquerda radical? Ou são aqueles que aparecem na televisão e na imprensa? (dado que os jornalistas, esses sim, estão regra geral mais à esquerda, isso poderia ajudar à visibilidade dos primeiros :)). E depende de que cientistas sociais fala. Haverá muitos sociólogos mais à esquerda, dado que prestam quase exclusiva atenção à temática das desigualdades; os economistas, esses, prestam muito mais atenção à temática do crescimento, independentemente da questão distributiva, e estes também são cientistas sociais - duvido que a maioria seja de esquerda.
Uma das razões por que eu chamei a atenção da filosofia política é que, regra geral, os cientistas sociais, independentemente da disciplina de formação, são muitas vezes pouco rigorosos na forma como pensam as questões filosófico-normativas. E preenchem a sua análise da realidade a partir de alguns 'humores' ideológicos. É esse um dos problemas da ideologia tal qual a defino: é mole e pouco rigorosa, e serve muitas para preencher os buracos - legítimos - das análises empíricas da realidade.

«Quando é que o Estado Social em qualquer estado ocidental europeu alguma vez vez gastou uma parte significativa (digamos mais de 10%) a subsidiar empresas ineficazes?...»

O Estado "social" não subsidia as empresas; o Estado "industrial" sim. Pedro, desculpe, mas a política dos "30 anos gloriosos" da promoção dos chamados "campeões nacionais" não foi outra coisa senão a promoção de empresas, onde se gastaram rios de dinheiro (e envolveram dos episódios mais embaraçosos de desperdício de dinheiros públicos). Muitas empresas eram eficazes - naquele contexto de crescimento mais elementar -, outras nem tanto; e muitas que eram eficazes, deixaram de o ser com as mudanças no funcionamento dos mercados e das tecnologias numa economia globalizada.

«Em primeiro lugar, ninguém à Esquerda (hoje) discorda que é preferível apoiar pessoas directamente do que empresas ineficientes.»

Então mas e o discurso à la PCP de crítica a "destruição da aparelho produtivo" do país é o quê?

«agora o Hugo apenas fala em transferir despesas de rubrica, não em diminuir os gastos totais do Estado, tal como dava a entender anteriormente»

Eu defendi a diminuição dos gastos do Estado? Onde?

"Se olhar para várias propostas do BE por exemplo, descobre que também aqui se acha que o Estado gasta mal e em coisas não prioritárias (tipo submarinos) em vez de gastar mais na área social."

Essa é fácil, porque é a área militar, é óbvio que o BE está contra.

"Suponho que o Hugo sabe que a ordem económica capitalista não gera "apenas" maior crescimento económico, mas tem associada uma série de consequências sociais que são anátemas para quem ache que relações de poder desiquilibradas são uma afronta à dignidade humana. Por isso, defender a ordem económica capitalista implica implicitamente defender a manutenção ou mesmo o crescimento dessas relações sociais onde a dignidade é correntemente calcada por quem manda."

Pedro, não estamos em 1917, sabemos um bocadinho mais sobre o mundo e dos sistemas económicos e políticos. Se conhecer um sistema económico que promova e defenda exclusiva e unilateralmente a "dignidade humana", por favor diga-me. Suponho que sabe também, mas não há mundos nem sistemas perfeitos. A democracia (politicamente) liberal e o Estado (economicamente) social é a combinação mais decente, ou se quiser a menos indecente, que a história conheceu. Contém indecências? Sem dúvida. Mas - parece-me óbvio - a escolha não é entre um sistema que contém indecências e um que não contém. É, por muito que isso nos deixe insatisfeitos, entre o menos indecente. E usar as indecências que existem no mundo mais decente, esquecendo que elas seriam - e foram - muito maiores num mundo mais indecente não me parece nada sério.

Devemos trabalhar para corrigir as indecências deste mundo sem pedir o impossível nem compararmos o nosso mundo com coisas que não existem. Nesse jogo eu não entro.
Parte da "diabolização" do "capitalismo" assenta na ideia de que podemos ter os sistemas complexos - como são as sociedade modernas - geridos a partir de modelos que eu francamente não percebo bem quais são. Qual é exactamente o seu ponto de partida, ou o seu "benchmark" histórico? Tem algum minimamente exequível? É que se não tem, todo o discurso é extroardinariamente fácil; podemos passar a vida a protestar contra os atentados à integridade do ser humano e às consequuências perversas do sistema capitalista sem ter uma única alternativa que se apresente como um bocadinho melhor. Eu acho isto incrivelmente insatisfatório, porque nao avança um milímetro na forma como podemos conceber um sistema que corrija os mecanismos que produzem estes efeitos. No limite, é uma espécie de revolta genuína, mas fácil e politicamente irresponsável. O Pedro - ou algum grupo político - tem uma varinha mágica para resolver os males do mundo? Tem alguma alternativa ao capitalismo, ou pelo menos à forma de combinação entre capitalismo e democracia que conseguimos construir na Europa? Qual é? É esta é minha impaciência com as pessoas que acham que basta elencar as perversidades do mundo resolver os problemas, esquecendo que as alternativas tentadas na história deram resultados bem piores. Isto não é fatalismo, nem é achar que não há alternativa. Talvez haja; agora, se há, então expliquem-me. Protestar e passar atestado de superioridade moral como alguma da esquerda gosta de fazer não serve de nada. Absolutamente nada.
Repito: se há alternativa, estou disposto a ouvir, de preferência sem moralismos e invocações da dignidade humana, como se o Pedro se preocupasse com ela e eu não. Mas primeiro aprendamos com o passado: coisa de que não estou seguro que muitos o tenham feito (o comum é a mais completa desvalorização, como se a experiência comunista não tenha sido o evento mais extraordinário do século passado). Quando oiço as pessoas falarem do "capitalismo", pergunto-me o que sabem do "socialismo" (e se sabem reconhecer o valor da democracia e das condições que a sua aceitação implica); pergunto-me se estamos em 2008 ou em 1908, e se não há obrigações éticas e intelectuais de retirar o mínimo de conclusões quando se trata não só de avaliar o passado, mas avaliar o presente, e pensar como o futuro pode ser melhor.

Hugo

Pedro Viana said...


"O que é preferível são partidos que sejam responsáveis e tenham ideias e uma estratégia para o país. O PCP e o BE, pela dimensão da sua clientela, têm estratégias a ela dirigidas, e a outras que possam convencer num dado momento de 'crise'. Partidos como o PS e o PSD são partidos de governo e têm de responder às maiorias. Os primeiros, porque não são partidos de Governo, estão numa posição em que existe um incentivo objectivo à irresponsabilidade das propostas; se eles passarem a disputar o mesmo eleitorado do PS perdem a sua identidade e o seu eleitorado predilecto para o vizinho do lado (como é lógico, o PCP e BE estão em competição directa). Um partido como o PS tem de atender às preocuações do país, o que funciona como um mecanismo disciplinador."
O que o Hugo diz não faz sentido. Propostas que num dado momento possuem apoio minoritário não se destinam necessariamente apenas a essa minoria. Pela própria natureza do que é a Esquerda, as propostas que emanam da Esquerda pretendem ser benéficas para a maioria das pessoas, mesmo que uma maioria não as apoie num dado momento. A história está cheia de propostas com apoio inicial minoritário, muitas vezes implementadas até com apoio minoritário na sociedade, mas que passado algum tempo passam a ter apoio maioritário. Acha por exemplo que quem (a Esquerda) nos EUA tem defendido um serviço nacional de saúde, posição essa claramente minoritária até há alguns anos atrás, o fazia tendo apenas em vista satisfazer a sua clique e não como medida benéfica para a maioria das pessoas? Quanto à irresponsabilidade das propostas, elas podem vir de qualquer lado. Se o que o Hugo diz é verdade, então os partidos de governo também não serão de todo imunes a propostas populistas, muitas vezes irresponsáveis, pois precisam de agradar a muitas pessoas em simultâneo. O Hugo realmente acha que a maioria das pessoas vota ao centro porque (lhes parece que) os partidos de centro apresentam propostas mais responsáveis?! O Hugo acha que a maioria toma sempre decisões razoáveis ou responsáveis?! A maioria das pessaos vota ao centro porque o ser humano é intrinsecamente conservador, avesso à mudança. E portanto receia apoiar quem lhe propõe mudar as coisas de modo significativo, mesmo que para melhor, mesmo que o convença que seria para melhor. Se o Hugo não percebe isto, entâo não percebe a dinâmicas mais básica do processo de escolha individual, e portanto colectivo.

"E depende de que cientistas sociais fala. Haverá muitos sociólogos mais à esquerda, dado que prestam quase exclusiva atenção à temática das desigualdades;"

Sim, estava a pensar apenas em sociólogos.

"Eu defendi a diminuição dos gastos do Estado? Onde?"

Aqui: "Implica que o Estado (pós-)industrial deve consumir menos recursos que o Estado social."

"Eu acho isto incrivelmente insatisfatório, porque nao avança um milímetro na forma como podemos conceber um sistema que corrija os mecanismos que produzem estes efeitos. (...) Tem alguma alternativa ao capitalismo, ou pelo menos à forma de combinação entre capitalismo e democracia que conseguimos construir na Europa? Qual é?"

Há aqui novamente uma grande confusão. Ninguém propôe "substituir" o sistema capitalista por outro novinho em folha já amanhã Poucos se iludem com revoluções repentinas. O que se pretende é reformar radicalmente o sistema actual, alterando-o progressivamente. A diferença entre nós está aqui: ambos queremos reformar o sistema, mas eu pretendo fazê-lo de modo muito mais profundo e mais rápido do que o Hugo. Não há qualquer divisão entre "revolução" e "reforma". Às vezes o Hugo é que parece preso aos clichés do séc. XX. Quanto às alternativas elas passam por basicamente por um aprofundamento da democracia em todas as suas vertentes, o respeito pelos direitos das gerações futuras, a propriedade colectiva dos bens naturais, a renúncia ao uso da violência como meio de resolução de conflitos, a re-distribuição como meio de redução da desigualdade. É radical. É possível. Mas não é consensual, e haverá quem se oponha por todos os meios possíveis. Levará a menos inovação (tecnológica), a menos crescimento económico? É bem possível. Diria até desejável. Aumnetará a felicidade das pessoas? Espero bem que sim. É por isso que apoio tal política.

"Mas primeiro aprendamos com o passado: coisa de que não estou seguro que muitos o tenham feito (o comum é a mais completa desvalorização, como se a experiência comunista não tenha sido o evento mais extraordinário do século passado). Quando oiço as pessoas falarem do "capitalismo", pergunto-me o que sabem do "socialismo" (e se sabem reconhecer o valor da democracia e das condições que a sua aceitação implica); pergunto-me se estamos em 2008 ou em 1908, e se não há obrigações éticas e intelectuais de retirar o mínimo de conclusões quando se trata não só de avaliar o passado, mas avaliar o presente, e pensar como o futuro pode ser melhor."

Como antes disse, quem parece preso no séc. XX é o Hugo. A "ditadura do proletariado" está morta e enterrada. É uma corrente ultra-minoritária na Esquerda na Europa e mesmo a nível mundial, A Esquerda hoje é a maior defensora da Democracia, como se pode ver por exemplo pelas conclusões de fóruns como o de Porto Alegre. Quem inventou o orçamento participativo? Quem promove a Democracia Directa? Quem exige maior democracia no local de trabalho? A Esquerda. A Esquerda Radical. Porque percebeu (tal como o anarquismo há muito tiha percebido) que o objectivo último da igualdade no acesso ao poder só pode ser conseguido através da democracia. Colocar o poder absoluto nas mãos de "elites vanguardistas" resulta apenas na substituição duma forma de opressão por outra, às vezes pior. Quem hoje tem pavor a mais democracia, à decisão colectiva, é a Direita neo-liberal (radical). Agora, democracia não significa capitalismo. Não há nada que ligue uma coisa à outra. O capitalismo é um sistema que mantém e promove a concentração de poder, algo que é um perigo para a democracia, Quem amealha (muito) poder resitirá por todos os meios a que o tirem (ex. através de impostos), e tentará obviamente distorcer o sistema político em seu favor. É elementar. O capitalismo é inerentemente um sistema que contém os valores da Direita (o poder a quem tem poder, porque se o tem é porque merece tê-lo), em oposição à democracia, um sistema que contém os valores da Esquerda (o poder a todos por igual, pois todos possuem o mesmo direito a ter poder).

Algo que o Hugo por vezes parece não compreender, não sei se demostrando ingenuidade no processo, é que apesar da esmagadora maioria do Estado Social ter sido erguido por partidos sociais-democratas, eles só tiveram capacidade para o fazerem porque havia "intransigentes" na rua a clamar por mais. A esquerda radical e a moderada são duas faces da mesma moeda, essenciais uma para a outra. Funcionam como o modelo bom-polícia+mau-polícia. Uma assusta a Direita, e a outra oferece-lhe uma forma de ceder. Sem a ameaça do comunismo o Estado Social estaria hoje numa fase muito mais primitiva. Mas neste tandém, importa antes de mais que os votos estejam na Esquerda Radical, para que o susto :) seja bem grande. Pois, para negociar, basta na realidade uma pessoa que se apresente como da Esquerda moderada. Obviamente, tal como no caso do bom-polícia+mau-polícia é habitual o primeiro acusar o segundo de estar a ser demasiado bruto/intransigente, e o segundo acusar o primeiro de ter cedido demais.

Hugo Mendes said...

Pedro,

Nem toda a extrema-esquerda é oportunista. Muita é apenas ingénua e bem intencionada. E às vezes é as duas coisas ao mesmo tempo, ao jeito do conceito de “má fé”. Mas é quase sempre excessivamente populista. Apresenta muitas vezes propostas que podem fazer sentido em abstracto, mas que são impossíveis de aplicar num contexto presente. Se podem sê-lo um dia? Talvez, dependendo de como as coisas evoluem. Podem ser bons pontos de reflexão para o futuro. Não tenho nada contra essa dimensão de futuro, desde que a ideologia mole dê lugar à reflexão séria e credível. Infelizmente, demasiadas vezes as propostas apresentadas servem apenas aumentar a sua quota eleitoral num dado momento de crise sócio-económica do país. E a existência de 2 partidos que disputam um eleitorado semelhante no nosso mercado eleitoral torna-os ainda mais agressivos e populistas.

“Quanto à irresponsabilidade das propostas, elas podem vir de qualquer lado. Se o que o Hugo diz é verdade, então os partidos de governo também não serão de todo imunes a propostas populistas, muitas vezes irresponsáveis, pois precisam de agradar a muitas pessoas em simultâneo.”

Claro que podem. E os partidos de governo fazem muitas asneiras, e causam muitos problemas ao país se promoverem o populismo (Santana Lopes é um bom exemplo do lado do PSD). Simplesmente, a probabilidade de serem punidos e perderem a governação é muito mais forte – e, por isso, disciplinadora - do que o que acontece a partidos que têm entre 5% e 10% do eleitorado e que falam para uma minoria. É por isso que Santana Lopes foi afastado do PSD e Louça ainda se mantém no BE .

«"Eu defendi a diminuição dos gastos do Estado? Onde?"
Aqui: "Implica que o Estado (pós-)industrial deve consumir menos recursos que o Estado social."»

Já disse isto várias vezes, mas fica de novo a explicação: o Estado social apoia e investe nas pessoas, o Estado industrial tenta proteger as empresas da competição. Disse que hoje o primeiro devia ser prioritário e gastar mais que o segundo. Não escrevi em lado nenhum que os gastos públicos agregados deviam diminuir. Acho que em Portugal deviam aumentar – precisamos é de saber como financiamos esse aumento.

Quanto ao resto das propostas, estão aqui pelo menos algumas que podemos discutir. O que posso dizer? Que até nem discordo com muitas delas em principio mas que, por as ver impossíveis de concretizar acho prioritário lutar por aquilo que é exequível. “Democracia directa” em sistemas complexos não faz sentido. Pode fazer num grupo pequeno; num mundo globalizado com organizações espalhadas pelo mundo não acho que seja um ideal pelo qual devamos lutar, por muito interessante que seja nos livros. A instabilidade provocada por um dispositivo desses é verdadeiramente bloqueadora da acção rotineira de milhões de pessoas que dependem de estabilidade.
“Renúncia ao uso da violência”? Isto é muito interessante, mas quer dizer exactamente quê? Que se o Irão lançar uma bomba sobre alguém ficamos quietos? Claro que entre sermos mais militaristas e mais pelo diálogo e pela persuasão multilateral, eu estou do lado dos segundos, mas, quer dizer, convém não achar que algum dia o mundo vai poder resolver todos conflitos sem qualquer recurso à força armada.
“Direitos das gerações futuras”? Sim, tudo bem, concordo em absoluto, mas o que quer isto dizer? “A propriedade colectiva dos bens naturais”? Sim, não discordo em teoria, mas explique-me por favor como quer fazer isto. Vai obrigar os russos – não falo dos outros camaradas menos simpáticos da OPEP - a partilhar o petróleo com o resto da humanidade de forma voluntária? Se não for de forma voluntária, e dado que exclui uma acção armada para os expropriarmos dos seus recursos naturais, fazemos o quê? Usamos a 'persuasão'?...
“Re-distribuição como meio de redução da desigualdade”? Sim, sem dúvida. A questão é através de que mecanismos e com que limites.
Menos “inovação tecnológica” e “menos crescimento económico”? Diga-me como pagará os salários e as reformas das gerações futuras com menos crescimento económico, aquelas a quem, afinal, devemos “direitos”.

Estas coisas são radicais. Não acho que sejam “possíveis”, neste momento, nem nas próximas décadas, nem, nalguns casos, nunca, porque são resultado de ideias sem qualquer conteúdo empírico. Algumas não passam de boas intenções. E as boas intenções sem capacidade de concretização podem ser ideias absolutamente desastrosas. Eu acho que devemos lutar pelo que não é “impossível”. Lutar pelo “impossível” como se não tivéssemos uma ideia da probabilidade de atingir certos objectivos é uma perda de tempo, paciência e recursos na luta pelo que é exequível. E é o caminho para a futura apatia e cinismo que se apoderou de tantos.
Talvez depois de atingirmos o que me parece exequível aquilo que é hoje impossível pareça menos impossível. Mas então, caramba, não coloquemos a carroça à frente dos bois. A estratégia, tantas vezes da extrema-esquerda, de não pactuar com uma reforma porque ela não é suficientemente radical é algo extraordinariamente conservador. Mas é fácil perceber: a conservação do status quo serve que nem uma luva à esquerda radical na medida em que: 1) lhe permite continuar a protestar (sabe que o protesto é um modo de vida para muitos…) e 2) evita confrontar-se com a possibilidade de as reformas da esquerda social-democrata permitirem uma melhoria gradual, algo que a extrema-esquerda não suporta. Daí a minha acusação de sistemático oportunismo das suas acções e propostas.

E isto não são clichés do século XX, Pedro. É a mesma história on and on and on. A retórica pode ser diferente, mas um bocadinho de memória e lucidez ideológica leva deve levar qualquer um a concluir que já viu este filme. Dantes era a luta contra o “capitalismo”, agora é a luta contra a “globalização”. Dantes era a luta pela “emancipação”, agora é a luta pela “democracia”. E por aí fora. Muda a linguagem, mas não muda a substância.
A esquerda a maior defensora da democracia? Mas que esquerda (quando vejo ‘Esquerda’ escrita com letra maiúscula desconfio logo da procura dos purismos…)? A estalinista? A trotskysta? A maoísta? A lambertista? A guevarista? Por favor. A lealdade destas correntes para com a democracia é, sempre foi, perfeita e totalmente instrumental. Quando a democracia serve para ganhar, são todos democratas; quando dá para o torto, lá vem mais um golpe. Os países do Leste Europeu também eram democracias, “democracias populares”.

Claro que depois as organizações políticas que andam com a “democracia” na boca são não raras vezes as mais anti-democráticas no seu funcionamento e aquelas que perpetuam os líderes ad eternum.

“O capitalismo é um sistema que mantém e promove a concentração de poder, algo que é um perigo para a democracia”

Mas como não temos outro sistema económico totalmente diferente, temos que viver com esta tensão, reformando-o por dentro. Achar que podemos sair dela instituindo qualquer forma de sistema centralizado como o socialismo, ou um sistema completamente descentralizado com base na “democracia directa” a uma escala que não seja a de um pequeno grupo não me parece sério. Isso é incompatível com a mais elementar forma de globalização – ou, por outras palavras, o que o Pedro propõe exige elevadíssimos níveis de autarquia. Pode ser que o Pedro prefira assim. Mas então assuma-o. Achar que podemos ter democracia directa num mundo como o de hoje sem parar todas as instituições, decisões e transacções, aumentando imenso a instabilidade dos sistemas – e com isso provocando ainda mais incerteza e medo nas pessoas, que mais conservadoras ficarão - é desconhecer de forma elementar como têm de funcionar as organizações para serem minimamente eficazes. Há muita mitificação do que é "democracia". Democracia pode significar cartel e abuso dos consumidores; pode significar abuso das minorias que discordam das minorias; pode, inversamente, significar incrível egoísmo se houver possibilidade de veto. Não podemos de "democracia directa" sem perceber que não há nada mais fácil do que ser pervertido do que a "democracia". Falta muito "reality check" a essa conversa fácil da democracia directa. E não me venham com Porto Alegre, como se isso provasse alguma coisa.

“Algo que o Hugo por vezes parece não compreender, não sei se demostrando ingenuidade no processo, é que apesar da esmagadora maioria do Estado Social ter sido erguido por partidos sociais-democratas, eles só tiveram capacidade para o fazerem porque havia "intransigentes" na rua a clamar por mais.”

O Pedro está certo e está errado – tudo depende de que era histórica estiver a falar. Antes do sufrágio universal era nas ruas, de facto, que as coisas se jogavam, e quanto mais “intransigentes” as massas na rua, mais poder para a esquerda. Mas está errado a partir do momento em que toda a população pode votar e os trabalhadores podem associar-se em sindicatos: não só os partidos e os sindicatos social-democratas que ajudaram a construir o Estado social derrotaram historicamente os partidos e os sindicatos comunistas – tirando França e Itália, países que ainda hoje pagam por isso do ponto de vista económico -, como era precisamente a força e a união dos sindicatos que continha a dissensão interna e as derivas populistas e esquerdistas.
Mais: a lealdade da esquerda radical para com o Estado social foi, alias, durante muito tempo, completamente instrumental. Ou já se esqueceu que da conversa do “capitalismo de Estado”? Da função que o Estado social tinha de “legitimar a acumulação capitalista”? Ou seja, a esquerda radical tinha a mesma atitude para com o Estado social que tinha em relação à democracia: quando podia servir os seus propósitos – neste caso, permitir a transição pacífica para o socialismo via a continua socialização dos meios de produção -, muito bem; quando afinal não levava a transição nenhuma, era uma mera “cedência”, uma forma de fazer o “capitalismo funcionar melhor”. A sério, Pedro, não há paciência, até porque hoje a mesma ausência de lealdade se mantém, basta ler com atenção o que se escreve.

“A esquerda radical e a moderada são duas faces da mesma moeda, essenciais uma para a outra.”

Para mim, q esquerda que não percebeu o que se passou no século XX, e que agora inventou uma ganga ideológica semi-nova para ver se engana alguns é absolutamente dispensável. É alias um empecilho para inúmeras políticas de esquerda. Muita gente, talvez por desconhecimento (e o conhecimento da história não é a forte dos jovens, que não estranhamente são o grosso dos simpatizantes e eleitorado destes grupos políticos) adere de boa fé sem saber a origem das ideias e das pessoas, e da falta de credibilidade que elas merecem. (como imagina, não estou a fazer um julgamento pessoal, nem sei a idade do Pedro).

“Mas neste tandém, importa antes de mais que os votos estejam na Esquerda Radical, para que o susto :) seja bem grande.”

Está enganado, e a história do século XX mostra isto muito bem. O que diz só leva a duas coisas: que o resto das pessoas cujos votos não estão na “esquerda radical” não confiem na esquerda em geral, e que as instituições do mercado de trabalho não funcionem, dependentes que estão de um sindicalismo irresponsável e contestatário, e causem elevados níveis de desemprego. Olhe para a França e para a Itália, os países com maior presença eleitoral e sindical no pós-1945 da “esquerda radical”. Países que eram dos mais ricos da Europa e que ficaram para trás, sem resolver os problemas de desigualdade interna e do desemprego, e com a esquerda sucessivamente fora do poder. Porquê? Porque as pessoas que não são extremistas de esquerda – isto, pelo menos 9 em 10 – não têm confiança na esquerda social-democrata, constantemente refém da esquerda extremista. Porque é que a esquerda francesa, quando acabar o mandato de Sarkozy em 2012, só teve um presidente da Republica durante 14 dos 56 anos da V Republica? Porque é que a Itália elege sucessivamente um qualquer Berlusconi para o Governo? Porque a esquerda radical retira força e credibilidade à esquerda social-democrata. A força social e eleitoral da esquerda radical é, regra geral - basta ver os exemplos históricos -, má para a capacidade de acção política da esquerda.
No extremo oposto do caso frances e italiano, olhe para a Suécia, onde os social-democratas governaram durante 40 anos entre a década de 30 e a década de 70, período de construção do Estado social. E porquê? Porque, à esquerda, os social-democratas eliminaram o peso social/eleitoral dos comunistas no final dos anos 20. O comunismo não metia medo a ninguém. E foi assim que se construiu o Estado social mais generoso e redistributivo.

Infelizmente, às vezes pergunto-me se a esquerda radical não é o pior inimigo da esquerda social-democrata, mesmo pior do que os neo-liberais e outros grupos do género. Não é preciso ir muito longe. Basta ver o que a primeira diz, todos os dias, desde há décadas, da segunda. E basta olhar para o história do século XX. É por isso que o que chama de 'clichés' dessa era são mais actuais do que nunca.

Hugo

Pedro Viana said...


"E os partidos de governo fazem muitas asneiras, e causam muitos problemas ao país se promoverem o populismo (Santana Lopes é um bom exemplo do lado do PSD). Simplesmente, a probabilidade de serem punidos e perderem a governação é muito mais forte – e, por isso, disciplinadora - do que o que acontece a partidos que têm entre 5% e 10% do eleitorado e que falam para uma minoria. É por isso que Santana Lopes foi afastado do PSD e Louça ainda se mantém no BE."

Hugo, aqui entra em múltiplas contradições. Em primeiro lugar, Santana Lopes não perdeu as eleições por ser populista, ainda mais por aplicar medidas populistas (coisa que nem fez, enumere-me uma). Aliás Santana Lopes esforçou-se fortemente por ser "responsável", tendo-se reunido de pessoas no governo com essa "aura". Santana Lopes perdeu porque o país estava farto do discurso da tanga do governo PSD/CDS e da situação económica que ele deixou (da qual foi apenas parcialmente responsável), ficou fulo com a fuga do Durão Barroso, e porque Santana foi constantemente atacado de dentro do seu próprio partido pelas "elites bem-pensantes" que nunca lhe perdoaram o estilo "novo-rico". Em segundo lugar, a sentido habitual com que se usa o termo populista é: prometer medidas populares de modo oportunista, de modo chegar ao poder Ora, por esta definição, quem acaba por implementar medidas populistas, irá beneficiar de apoio popular. É ou não populista, por exemplo, aumentar os salários dos funcionários públicos acima da média dos anos anteriores antes das eleições? Que governo não fez tal? Foram penalizados por causa disso?!... É completamente contra-senso, e empiricamente falso, que a implementação e defesa de medidas populistas leve a derrotas eleitorais, enquanto que a governação "responsável" origine vitórias eleitorais. Tem um exemplo bem fresco: o referendo irlandês ao Tratado de Lisboa. Tenho a certeza que acha que o Não usou e abusou do populismo, estando do outro lado uma coligação responsável, que incluia um governo responsável pelo "milagre económico irlandês". Que aconteceu?...



"Não escrevi em lado nenhum que os gastos públicos agregados deviam diminuir. Acho que em Portugal deviam aumentar – precisamos é de saber como financiamos esse aumento."

Perfeitamente de acordo.



"Que até nem discordo com muitas delas em principio mas que, por as ver impossíveis de concretizar acho prioritário lutar por aquilo que é exequível."

1. Ainda bem que concordamos no que é essencial, ou seja no que é desejável.
2. Repito. Ninguém clama pela implementação desses princípios amanhã. O problema, que o Hugo parece recusar ver, reside em diferentes interpretações do que é exequível já amanhã. Infelizmente, o Hugo recusa-se a aceitar a possibilidade de estar errado, de afinal subestimar o que é realmente exequível. E o primeiro princípio do diálogo construtivo é admitir que se pode estar errado. O Hugo refugia-se numa visão tecnocrática, segundo a qual existe apenas uma via perante a evidência empírica reunida pelas ciências sociais. Ora, devia saber bem que as ciências sociais não são de modo nenhum análogas às ciências exactas. A evidência empírica é por vezes contraditória, presta~se a interpretações distintas, e leva a conclusões diferentes consoante o objectivo político pretendido.
3. Não é possível decidir que medidas políticas exequíveis se pretende implementar sem ter princípios orientadores que no limite são sempre irrealistas. Não me diga que o Hugo apenas pretende por ex. diminuir em 2% o nível de pobreza nos próximos 4 anos, e pronto o seu objectivo está satisfeito, não se fala mais em probreza. Suponho que tal como o resto da Esquerda, o Hugo na realidade pretende erradicar a pobreza. Ou não? Isso faz parte da sua ideologia, ou princípios filosóficos, chame-lhe o que quiser se fica mais satisfeito. O que nos distingue, repito, é a rapidez (e também a profundidade) com que queremos resolver certos problemas. Eu acho que é possível fazê-los de certo modo, e mais rapidamente, o Hugo discorda quanto ao método e a velocidade. Tudo bem, podemos discutir isso. Agora não me venha com essa treta de que uns vivem na lua, os irresponsáveis, enquanto os outros é que vivem com os pés bem assentes na terra, os responsáveis. Esse tipo de arrogância intelectual, até moral, é tão má, ou pior, do que a atitude de superioridade moral de que acusa a Esquerda Radical.

"“Democracia directa” em sistemas complexos não faz sentido. Pode fazer num grupo pequeno; num mundo globalizado com organizações espalhadas pelo mundo não acho que seja um ideal pelo qual devamos lutar, por muito interessante que seja nos livros. A instabilidade provocada por um dispositivo desses é verdadeiramente bloqueadora da acção rotineira de milhões de pessoas que dependem de estabilidade."

1. O país com os mais avançados dispositivos de Democracia Directa é a Suiça. Acha que é um país particularmente instável?... Logo atrás encontra-se por exemplo os EUA. Outro país instável?!...
2. Há estudos empíricos, repito empíricos, que demonstram que quando existem mecanismos de democracia directa as pessoas sentem-se melhor, literalmente mais felizes. É simples, sentem que são importantes, que possuem poder para influenciar directamente decisões que os afectam pessoalmente. Não acredita? Leia:
http://www.neweconomics.org/gen/z_sys_publicationdetail.aspx?pid=162
3. Mecanismos de democracia directa geram instabilidade se as pessoas assim o quiserem. São elas que decidem. Se quiserem estabilidade votam de modo a mantê-la. Onde está a dificuldade de compreender isto? Ou agora o Hugo é que sabe o que é desejável para uma maioria de pessoas? Acha-se mais inteligente do que elas, mais sabedor de quais são os seus anseios e objectivos?
4. Arrepia-me que haja há Esquerda quem ache que é perigoso dar às pessoas o poder de decidir. Não é só o Hugo, ou a Esquerda moderada. Tal atitude é extremamente comum na Esquerda radical, onde ainda persiste uma desconfiância enorme perante o comum dos mortais, vistos como seres conservadores, limitados na sua visão, nada comparável à "vanguarda iluminada". Esta tensão existe desde sempre no seio da Esquerda, em particular na mais radical, entre uma visão mais estatista, controladora, e a visão mais anarquista, descentralizadora. Durante o séc. XX a primeira visão teve clara supremacia. Hoje, felizmente, já não é bem assim. Mas a discordância quanto aos meios não existe apenas entre a Esquerda Radical e a Moderada, mas também dentro da primeira.


“Renúncia ao uso da violência”? Isto é muito interessante, mas quer dizer exactamente quê? Que se o Irão lançar uma bomba sobre alguém ficamos quietos? Claro que entre sermos mais militaristas e mais pelo diálogo e pela persuasão multilateral, eu estou do lado dos segundos, mas, quer dizer, convém não achar que algum dia o mundo vai poder resolver todos conflitos sem qualquer recurso à força armada."

Significa simplesmente agir de modo a que o recurso à violência seja apenas em último caso e em estrita defesa própria. Signifca agir na promoção da paz, e recusar o planeamento da guerra. Se quiser, um dia, podemos conversar melhor sobre o que isto signifca em termos de políticas. Mais uma vez peço-lhe que não subestime os seus interlocutores, assumindo que são uns débeis mentais.


“Direitos das gerações futuras”? Sim, tudo bem, concordo em absoluto, mas o que quer isto dizer?"

Significa que não temos o direito de colocar em causa o futuro das gerações futuras em causa, por exemplo através da destruição ambiental ou da irresponsabilidade financeira (sim, acho que náo é aceitável que as gerações actuais se endividem de tal modo que acabem por sobrecarregar as gerações futuras com pesados compromissos).

“A propriedade colectiva dos bens naturais”? Sim, não discordo em teoria, mas explique-me por favor como quer fazer isto. Vai obrigar os russos – não falo dos outros camaradas menos simpáticos da OPEP - a partilhar o petróleo com o resto da humanidade de forma voluntária?"

Honestamente, não lhe fica bem tentar ser engraçadinho. Todos os bens naturais devem ser colectivos, pois ninguém os criou, sendo nós apenas usuários passageiros, com a responsabilidade de os usar de forma sustentável tendo em vista a sua transmissão às gerações futuras. A admnistração desses bens deve em primeiro lugar estar sob a alçada das pessoas que habitam onde eles existem, podendo, dependendo do seu impacto global, ter lugar a oscultação de orgãos de carácter territorialmente mais abrangente (no limite, global). Se o Brasil resolver destruir a Amazónia, todo o planeta será afectado de múltiplas maneiras. É por demais justo que então o resto da população mundial tenha uma palavra a dizer. Ou o Hugo acha que o Brasil tem o direito a fazer o que bem entender com a Amazónia? Obviamente, a realidade actual apenas permite a posse colectiva dos bens naturais a nível de país. Por si só tal já seria um passo enorme na direcção correcta. Isso não quer dizer que não se ache que o ideal seria haver soberania partilhada a nível global dos recursos naturais, como já acontece por exemplo com o mar (alto), a atmosfera e a Antártica. Note que quando falo de recursos naturais, estou também a pensar em algo tão banal, e tão essencial, como a própria terra. Esta deve ser usada por alguém apenas enquanto tal fôr útil à comunidade (e a si próprio, claro).

"Menos “inovação tecnológica” e “menos crescimento económico”? Diga-me como pagará os salários e as reformas das gerações futuras com menos crescimento económico, aquelas a quem, afinal, devemos “direitos”."

Não me choca de todo que no futuro as reformas sejam efectivamente mais baixas em termos globais, desde que tal seja compensado por uma redistribuição e por um aumento efectivo da qualidade de vida para a maioria da população. E aqui incluo tudo, desde melhores serviços públicos de saúde, até o aumento do bem-estar que decorre da promoção do envolvimento pessoal no processo decisório.

"Eu acho que devemos lutar pelo que não é “impossível”."

Eu também. O Hugo realmente acha que tem o monopólio do conhecimento sobre o que é ou não possível? Ninguém luta pelo que é impossível. È um contra-senso, seria masoquista. Quem luta, luta sempre por algo que julga, "bem ou mal", possível. A diferença está no que se acha possível. Eu aceito que há diferentes possíveis num dado momento, e que o que é ou não realmente possível não á algo estático, mas decorre da dinâmica da própria luta pelo que se julga possível.


"A estratégia, tantas vezes da extrema-esquerda, de não pactuar com uma reforma porque ela não é suficientemente radical é algo extraordinariamente conservador."

O problema, o Hugo bem sabe, hoje em dia não é usualmente esse, mas sim o facto dessa reforma na realidade ser mais uma contra-reforma.

"evita confrontar-se com a possibilidade de as reformas da esquerda social-democrata permitirem uma melhoria gradual, algo que a extrema-esquerda não suporta."

O seu faccionismo é por vezes espantoso. Donde é que tirou esta?! Por acaso viu alguém à Esquerda dizer por exemplo que o complemento de pensão para idosos não devia ir para a frente porque não era suficientemente radical? Pretendeu-se que ele fosse mais ambicioso, mas toda a Esquerda apoiou a medida e ficou satisfeita com ela. A Esquerda Radical nunca votou contra as medidas **de Esquerda** da "Esquerda Moderada" por estas não serem suficientemente radicais, a não ser nos casos raros em que a implementação de tais medidas efectivamente bloqueie medidas mais radicais por muito tempo (vide tratados europeus).


"A esquerda a maior defensora da democracia? Mas que esquerda (quando vejo ‘Esquerda’ escrita com letra maiúscula desconfio logo da procura dos purismos…)? A estalinista? A trotskysta? A maoísta? A lambertista? A guevarista? Por favor. A lealdade destas correntes para com a democracia é, sempre foi, perfeita e totalmente instrumental. Quando a democracia serve para ganhar, são todos democratas; quando dá para o torto, lá vem mais um golpe."

Golpe de Esquerda?! Qual foi o último país em que a Esquerda tomou o poder pelas armas?... Se o Hugo se sente confortável continuamente a agitar os seus espantalhos dos meados do séc. XX, faça favor. Mas não pretenda ser então sua intenção ter um debate honesto sobre o que deve constituir uma política de esquerda.


“O capitalismo é um sistema que mantém e promove a concentração de poder, algo que é um perigo para a democracia”

"Mas como não temos outro sistema económico totalmente diferente, temos que viver com esta tensão, reformando-o por dentro."

Lá vamos nós outra vez. Eu também quero reformá-lo. De tal modo que se torne a longo prazo irreconhecível como capitalismo. Quando é que uma economia de mercado deixa de ser capitalista? Depende do ponto de vista. Há quem nos EUA ache que toda a Europa vive mergulhada no mais tenebroso socialismo. Talvez um dia possamos conversar a sério sobre a partir de que ponto é que se pode deixar de falar em economia de mercado de cariz capitalista. Diria que a partir do momento em que haja sérios entraves à acumulação de bens e capital, e do poder sobre outros que tal significa, já não podemos falar em capitalismo.

"é desconhecer de forma elementar como têm de funcionar as organizações para serem minimamente eficazes."

Lá está. Para mim o bem-estar e o bem-comum estão para mim acima da eficiência. Se as pessoas querem eficiência, e tal significa uma estrutura piramidal de decisão. podem decidir delegar. É simples. Obviamente, têm o direito de a qualquer altura decidir revogar essa delegação de poderes. Eu não subestimo os outros. Nisso o Hugo não difere em nada dos iluminados da Esquerda Radical que acham que sabem o que é melhor para os outros.

"Olhe para a França e para a Itália, os países com maior presença eleitoral e sindical no pós-1945 da “esquerda radical”. Países que eram dos mais ricos da Europa e que ficaram para trás"

Ficaram tanto para trás que o Human Development Index para 2007/2008 mostra a França em 10o lugar, bem à frente de países como o Reino Unido (16o) ou a Alemanha (22o). Tudo bem. Eu valorizo mais a qualidade de vida. O Hugo às vezes parece preocupar-se mais com a riqueza gerada, independentemente de onde vai parar. Ver (atenção: são dados empíricos...)
http://hdr.undp.org/en/statistics/

"Porque a esquerda radical retira força e credibilidade à esquerda social-democrata."

Certo. Em quantos governos participou a Esquerda Radical?... Portanto, na esmagadora maioria das vezes em que a Esquerda Moderada governou, sozinha, na realidade perdeu o poder por causa da Esquerda Radical... certo. Já ouvi argumentar que a Esquerda Radical até dá jeito porque faz parecer a Esquerda Moderada... moderada e responsável. Mas nunca o oposto... Sem dúvida que o PS vai perder a maioria absoluta em 2009 porque até governou bem, mas a Esquerda Radical incutiu nas pessoas a desconfiança de que na realidade o PS anda a implementar políticas irresponsáveis da Esquerda Radical com a qual afinal está conivente. Se isto não faz sentido, é porque... não faz mesmo.

"No extremo oposto do caso frances e italiano, olhe para a Suécia, onde os social-democratas governaram durante 40 anos entre a década de 30 e a década de 70, período de construção do Estado social. E porquê? Porque, à esquerda, os social-democratas eliminaram o peso social/eleitoral dos comunistas no final dos anos 20. O comunismo não metia medo a ninguém. E foi assim que se construiu o Estado social mais generoso e redistributivo."

?!... Os sociais-democratas assumiram uma posição hegemónica exactamente porque assumiram como seus muitos dos objectivos (mas não os meios) da Esquerda Radical. De tal modo que até à década de 90 a Suécia era considerada o país mais socialista da Europa Ocidental. E como é que o comunismo não metia medo a ninguém com a União Soviética mesmo ao lado?! De tal modo que a Suécia foi obrigada a manter-se neutral. Tudo menos neutral é a visão histórica do Hugo.

Para acabar, e para que o Hugo saia um pouco desse clichés à la séc. XX sobre a Esquerda Radical, recomendo a consulta do trabalho desenvolvido pelo ´think-thank´ New Economics Foundation

http://www.neweconomics.org/

Se pudesse, tinham o meu voto. Boa leitura.

Hugo Mendes said...

Pedro, a única coisa que quis dizer é que nos partidos de responsabilidade governativa, o populismo é mais mal visto do que nos partidos radicais e que 1) a probabilidade de serem tomados por um líder populista é menor e 2) a probabilidade de, se tomados por alguém do género, este ser afastado de forma mais ou menos célere, é maior. E não precisa de ser afastado pelo eleitorado; podem sê-lo pelas elites internas mais responsáveis (aliás este processo pode ser aliás mais comum do que a sanção eleitoral). É obvio que o eleitorado pode ir atrás dos populistas. Mas é difícil um populista, em sistemas democráticos maduros, liderar fazendo o que lhe apetece, durante muito tempo. É que pressão não é só do eleitorado, e não só da elites partidárias da facção contrária. É das elites financeiras, das elites económicas, das intelectuais, e mesmo das organizações internacionais mais variadas. A minha ideia é apenas esta: os partidos de governo e os seus líderes têm um muito maior incentivo para ser responsável e disciplinado. Os dos partidos radicais, não. Se não forem, deixam de ter marcar a sua identidade. Se o BE se parecer demasiado com o PS, para quê votar BE? Isto é uma conclusão elementar da sociologia política.

«Não me diga que o Hugo apenas pretende por ex. diminuir em 2% o nível de pobreza nos próximos 4 anos, e pronto o seu objectivo está satisfeito, não se fala mais em pobreza. Suponho que tal como o resto da Esquerda, o Hugo na realidade pretende erradicar a pobreza. Ou não? »

O objectivo de erradicar a pobreza em países prósperos é muito diferente de alguns objectivos que o Pedro coloca. E para além do mais é um objectivo que partilhamos. Eu, por exemplo, não partilho o objectivo de alargar a democracia directa a tudo quanto é instituição. Não é só a questão de não ser exequível; é a questão, para mim, de não ser desejável. Há limites para a lógica democrática.

«Esse tipo de arrogância intelectual, até moral, é tão má, ou pior, do que a atitude de superioridade moral de que acusa a Esquerda Radical.»

Sim, cada vez que vejo alguém do BE falar na televisão o que mais vejo é mesmo humildade intelectual e moral...

«1. O país com os mais avançados dispositivos de Democracia Directa é a Suiça. Acha que é um país particularmente instável?... Logo atrás encontra-se por exemplo os EUA. Outro país instável?!...»

Se por ‘democracia directa’ se refere a alguns referendos por ano, isso não me choca nada. Apesar disso, acho que os referendos são extraordinariamente dados à demagogia, e um instrumento, aliás, adorado pela direita também. Mas não sou contra por princípio, claro. Mas isso não me parece nada muito extraordinário; não é nenhuma exigência ‘radical’.

«2. Há estudos empíricos, repito empíricos, que demonstram que quando existem mecanismos de democracia directa as pessoas sentem-se melhor, literalmente mais felizes. É simples, sentem que são importantes, que possuem poder para influenciar directamente decisões que os afectam pessoalmente. Não acredita? Leia:
http://www.neweconomics.org/gen/z_sys_publicationdetail.aspx?pid=162»

A felicidade não é único critério a ter em conta. E claro que esta ‘felicidade’ é abstracta e experimental e não vale de nada ‘empiricamente’ se as pessoas tivessem que levar com os efeitos indirectos de tomadas de decisão democráticas em escala massiva – ou seja, se a experiência fosse a larga escala e tivesse consequências no quotidiano. Se isso gerasse uma tremenda eficácia nos sistemas e nas organizações – como geraria, seguramente - , aposto que os níveis de felicidade desciam drasticamente.

«3. Mecanismos de democracia directa geram instabilidade se as pessoas assim o quiserem. São elas que decidem. Se quiserem estabilidade votam de modo a mantê-la. Onde está a dificuldade de compreender isto? Ou agora o Hugo é que sabe o que é desejável para uma maioria de pessoas? Acha-se mais inteligente do que elas, mais sabedor de quais são os seus anseios e objectivos?»

Pedro, desculpe, mas só admito que não esteja a querer compreender. Quando mais descentralizadas forem as decisões, mais instáveis e incertas são para quem as NÃO toma, ou seja, todos os grupos que serão, directa ou indirectamente, afectados por essas decisões. É óbvio que se o grupo X toma uma decisão que vai impactar indirectamente sobre o grupo Y, o grupo Y está suspenso pela decisão do grupo X. A democracia directa (descentralizada – é disso que estamos a falar, não?) aumenta a entropia dos sistemas, é tão simples como isto.
Concordo consigo, porém, que, em algumas áreas, podemos aumentar a participação democrática. Não sou contra a generalização de certas experiências interessantes. Os júris de cidadãos dão resultado em inúmeras em vários países nórdicos em áreas ligadas, por exemplo, à tecnologia, e podem ser generalizados a outros países, e em outras áreas ou sectores. Eu acho isso interessante - desde que não pensemos que isso vai “revolucionar o sistema”, podemos reflectir sobre as possibilidades (bem como sobre os limites e os efeitos mais perversos) de certas intervenções democráticas. Isto são alguns passos que podem ser dados numa “democratização da democracia”, se quiser, mas não me parece nada “sistemicamente revolucionário”. Se apresentadas com seriedade e sem ganga ideológica, muita gente até pode reflectir/concordar com elas. Mas não lhe coloquemos as roupas do “radicalismo”, isso serve para assustar as pessoas (tirando os 5%-10% do costume), e não adianta um centímetro.

«Se o Brasil resolver destruir a Amazónia, todo o planeta será afectado de múltiplas maneiras. É por demais justo que então o resto da população mundial tenha uma palavra a dizer. Ou o Hugo acha que o Brasil tem o direito a fazer o que bem entender com a Amazónia? Obviamente, a realidade actual apenas permite a posse colectiva dos bens naturais a nível de país. Por si só tal já seria um passo enorme na direcção correcta. Isso não quer dizer que não se ache que o ideal seria haver soberania partilhada a nível global dos recursos naturais, como já acontece por exemplo com o mar (alto), a atmosfera e a Antártica. Note que quando falo de recursos naturais, estou também a pensar em algo tão banal, e tão essencial, como a própria terra. Esta deve ser usada por alguém apenas enquanto tal fôr útil à comunidade (e a si próprio, claro).»

Pedro, não discordo, mas preocupa-me e interessa-me mais como é que passamos isto à prática. O que fazemos se o Brasil não concordar? Essa é a parte difícil. O resto é filosofia política abstracta.
E não disse como fazia com o recurso mais precioso de todos os recursos – diga-me, como garantia a posse colectiva do petróleo? Ou este recurso fica de fora do mesmo principio? É que, comparado com isso, a Amazónia é fácil! (como já fizemos com a Antártica).

«Não me choca de todo que no futuro as reformas sejam efectivamente mais baixas em termos globais, desde que tal seja compensado por uma redistribuição e por um aumento efectivo da qualidade de vida para a maioria da população. E aqui incluo tudo, desde melhores serviços públicos de saúde, até o aumento do bem-estar que decorre da promoção do envolvimento pessoal no processo decisório.»

Ainda bem que partilhamos alguns objectivos. Mas o Pedro não compreende que nada disto é possível garantir sem inovação tecnológica e crescimento económico? Não consigo explicar mais. Parece-me uma evidência. Com o crescimento fraco que já temos hoje já estamos no fio da navalha; nem quero imaginar se o crescimento fosse ‘zero’ ou menos ainda. E já nem falo nas consequências económicas; as sociais são também fáceis de prever: estaríamos a criar um barril de pólvora social. O crescimento económico é um factor sine qua non para a(lguma) estabilidade social (condição essencial mas não suficiente, claro).

«Por acaso viu alguém à Esquerda dizer por exemplo que o complemento de pensão para idosos não devia ir para a frente porque não era suficientemente radical?»

Claro que ouvi a desvalorizar! Como ouvi a desvalorizar os aumentos do abono de família, o rendimento mínimo, o Novas Oportunidades, o salário mínimo etc….São sempre “migalhas”.

«Golpe de Esquerda?! Qual foi o último país em que a Esquerda tomou o poder pelas armas?... Se o Hugo se sente confortável continuamente a agitar os seus espantalhos dos meados do séc. XX, faça favor. Mas não pretenda ser então sua intenção ter um debate honesto sobre o que deve constituir uma política de esquerda.»

Pedro, não falei de golpes de Estado; falei de golpes ‘pequenos’, a nível organizacional, se quiser. Parece-me que não conhece bem a história da esquerda radical. E é por isso que não são espantalhos. Fazem parte da história política de quem hoje clama pela “democracia” e que pela democracia nunca teve a mínima lealdade. Vindo de quem vem, é preciso uma lata extroardinária. Desculpe colocar as coisas assim, mas no que toca a muita dessa gente – a mais velha, os líderes desses movimentos - eu não acredito numa palavra quando se referem a “democracia”. Talvez uma geração diferente, liberta de certos ideais e certos costumes, e pelo respeito de outros, SE conhecer bem o passado (e os alçapões que se abrem sem que as pessoas sem cultura histórica percebam), então talvez eu atribua credibilidade e seriedade a muitas coisas que podem fazer sentido "em abstracto". Sei que com esta atitude corro o risco de meter demasiada gente no mesmo saco, e cometa injustiças. Mas prefiro ter a certeza que as pessoas bem intencionadas aprenderam com a história antes de abraçar certos ideais e adoptar certos objectivos. E se o fizessem, deviam ser os primeiros a dizer: “eu distingo-me da esquerda social democrata, mas também tenho consciência de que o que dizem estes tipos aqui ao lado não é sério, por muito semelhante que seja o seu discurso com o meu”. Quando e se essa ruptura for explícita, eu atribuirei credibilidade a essas pessoas e a esses objectivos. Há muita gente séria na universidade (e em alguns movimentos sociais) que defende coisas que o Pedro defende e se demarcam de experiências e estratégias históricas. Não tenho qualquer problema com essas pessoas/ideias, mas aí é fácil perceber de que lado se está, e com que bases políticas e filosóficas defendem o que defendem. Por exemplo, a esquerda radical apropria-se de muitas coisas que o Stiglitz diz – e com a benesse dele. A questão central é que eu não confundo o Stiglitz com os que se apropriam das coisas que ele diz. Nem confundo a esquerda ecológica com a esquerda radical ex-pós-(…)-marxista. A primeira é demasiado bem intencionada – e por vezes adolescente e pouco pragmática, mas tudo bem -, enquanto a segundo é muito mais cínica e maquiavélica – fazendo uso das tais tácticas do passado. Claro que a segunda se apropria rapidamente das bandeiras da primeira, e lá fica tudo uma grande misturada.
Para aqueles que agitam as bandeiras da esquerda radical, varrer a história dessas pessoas e desses movimentos para debaixo do tapete, como se por milagre tivesse havido uma cesura entre o passado recente e o presente, isso não. O Pedro pode chamar-me arrogante. Não tenho nenhum problema com isso. Deve ser apenas o resultado de ter aprendido um bocadinho.

“Diria que a partir do momento em que haja sérios entraves à
acumulação de bens e capital, e do poder sobre outros que tal significa, já não podemos falar em capitalismo.”

Sem dúvida. Não sei é como é que isto nos impede de caminharmos para a pobreza generalizada. Talvez para o Pedro isto não seja um problema. Mas duvido que mais de 5% das pessoas no mundo próspero pensem assim. E nem imagino os que, no resto do mundo, querem sair dela.

“Para mim o bem-estar e o bem-comum estão para mim acima da eficiência.”

O Pedro separa demasiado o bem-comum da eficiência. Onde a ineficiência é tremenda não há bem comum que sobreviva (só mesmo o mal comum).

“Se as pessoas querem eficiência, e tal significa uma estrutura piramidal de decisão. Podem decidir delegar.”

Qual é a sua estratégia para obrigar que as empresas privadas funcionem assim? Expropriamos a propriedade privada? Obrigamos por lei a funcionar como o Estado quer? Isto não é tentar ser engraçadinho. É mostrar como algumas dessas propostas são irreais, porque não temos modos minimamente credíveis de as por em prática. O ónus em demonstrar a credibilidade das soluções está do lado de quem as propõe.

«Ficaram tanto para trás que o Human Development Index para 2007/2008 mostra a França em 10o lugar, bem à frente de países como o Reino Unido (16o) ou a Alemanha (22o).»

A Itália está num belo lugar… Quanto à França, esse lugar é sem dúvida interessante (e o HDI tem naturalmente um delay em relação à performance económica – o problema desta são os efeitos a longo prazo, que depois, quando chegarem – porque chegam -, não serão invertíveis de um dia para o outro -> e foi isso precisamente que aconteceu com a Itália, cujo declínio já tem décadas; esperemos que a França consiga inverter algum declínio (e já agora, o HDI foi concebido para a avaliação do progresso dos paises mais pobres; é um instrumento muito grosseiro na comparação entre os países mais prósperos; para esse fim, qualquer grupo de indicadores estruturais da UE é mais fiável do que o HDI). Como é que a esquerda radical justifica isto tendo sido o pais governo, nos últimos 50 anos, ao longo de 36 anos de um governo de centro-direita, que fez em muitos casos, na área social, o um governo de centro-esquerda teria feito (ou não teria feito de muito diferente)?


“... Portanto, na esmagadora maioria das vezes em que a Esquerda Moderada governou, sozinha, na realidade perdeu o poder por causa da Esquerda Radical... certo.”

Pedro, os países onde a esquerda radical é (relativamente) forte, não precisa de estar no governo para fazer pressão sobre os governos social-democratas. Pode, por ex., estar no parlamento, e a esquerda moderada não ter a maioria – precisamente porque a esquerda radical é forte (‘roubando-lhe’ alguns deputados), e esta contribuir para a sua queda ou para a sua incapacidade de agir. Mais: por via da pressão sindical, há continua agitação popular e laboral, dado que nesses países muitos sindicatos são afectos aos partidos comunistas e não têm nenhuma estratégia alternativa que fuja ao que o comité central dita. E não é a questão de “perder o poder”. É a questão de não conseguir fazer o que está no seu programa político. E é a questão de, na eleição seguinte, se a performance da economia for má (por múltiplos motivos, e a dificuldade de obter acordos à esquerda para viabilizar reformas económicas é obviamente um só), a esquerda perder o poder porque as pessoas perdem a confiança na esquerda moderada, porque a sabem sempre refém de uma forma ou de outra de um bando de radicais. E, pronto, a direita volta a ganhar. Já referi, e o Pedro ignorou, o padrão francês e italiano.

«Os sociais-democratas assumiram uma posição hegemónica exactamente porque assumiram como seus muitos dos objectivos (mas não os meios) da Esquerda Radical. De tal modo que até à década de 90 a Suécia era considerada o país mais socialista da Europa Ocidental. E como é que o comunismo não metia medo a ninguém com a União Soviética mesmo ao lado?! De tal modo que a Suécia foi obrigada a manter-se neutral. Tudo menos neutral é a visão histórica do Hugo.»

Não, Pedro, os social-democratas aceitaram que era preciso fazer pactos com os capitalistas, como fizeram no grande acordo de 1938. O regime sueco assentava num pacto entre a elite social-democrata e a elite económica sueca, riquíssima, e aceitava os altos impostos e não levar o investimento para fora do país em troca de paz social garantida pelo movimento sindical. O pacto não era metafórico, era real, e por alguma razão o mesmo partido foi o escolhido, com grande consenso, para governar ao longo de 40 anos, dada a aceitação que havia por parte da grande burguesia sueca. A Suécia era uma social-democracia clássica, onde as grandes empresas eram privadas (Saab, Volvo, etc.) e os serviços públicos…públicos. Estava marcada a distinção entre o ‘Estado industrial’ e o ‘Estado social’ de que lhe falei. Claro que havia períodos de dissensão entre o partido e o sindicato: os sindicatos queriam por vezes ir longe de mais na democracia industrial, e avançar no controlo do investimento das empresas, que os capitalistas viam como território seu. Quando os sindicatos resolveram, depois de um contexto de crise temporária no final dos anos 60, puxar demais a corda – entre 1971 e 1974 – a alta burguesia chateou-se, achou que aquilo estava a ir longe demais e retirou o apoio ao social-democratas. Resultado: em 1976 o partido social-democrata perdeu as eleições pela primeira vez em 4 décadas e foi formado um governo burguês com 3 partidos (que, alias, não durou muito).
E a Suécia tanto não era “socialista” – ou vista como tal - que os socialistas europeus, em particular os franceses (que eram os socialistas mais ‘ideológicos’, claro) – veja o que dizia o Mitterrand dos países nórdicos nos anos 60 e 70… - acusavam regimes de terem pactuado demais com os capitalistas. Repito: a esquerda radical não via no Estado social a realização dos seus ideais; a sua lealdade para com aquele era reduzida e instrumental (por instrumental digo que apoiavam apenas enquanto estratégia entrista para um dia “derrubar o capitalismo”).
Os social-democratas não precisam do ‘papão comunista’ para levar a cabo as reformas segundo os seus ideais – a social-democracia é um sistema ideológico autónomo, não precisa de super-egos marxistas.

Abraço,
Hugo

Pedro Viana said...

Acho que a discussão já vai longa. Agradeço a disponibilidade para conversar tão longamente. Fica o meu desejo que o Hugo confunda menos a postura pública dos partidos políticos, que tem muito de teatro, com as opiniões pessoais daqueles que os apoiam, quase sempre mais por afinidade do que por concordarem a 100% com o que é defendido. Há pessoas que não têm capacidade de ir além da promoção da politiquice nos seus blogues, o que não é claramente o caso do Hugo. Interessa antes de mais discutir políticas e os seus fundamentos, e não trocar acusações sobre quem é mais de confiar e quem está vendido a quem, colando etiquetas a torto e a direito.