Friday, July 18, 2008

Mitos

É um pouco cansativo ler na opinião publicada que hoje a violência (e a indisciplina - conceitos que surgem associados mas que se referem a comportamentos diferentes), em particular nos adolescentes e jovens adultos é maior do que no passado e que, claro, a culpa deste estado de coisas é o fim das 'tradições', da família, e do Estado social.

A coisa interessante é que nunca estas afirmações são acompanhadas de qualquer estudo ou elemento empírico - é como se o argumento fosse óbvio e auto-suficiente. Como afirma João Carlos Espada, «só não vê quem não quer ver». Ora, este argumento tem, feliz ou infelizmente (depende que lado da discussão ocupamos), a consistência da espuma. É que estas não coisas que se vejam à vista desarmada - ou como se o SIC ou a TVI fossem o espelho do mundo. E é preciso um bocadinho de mais atenção e rigor que não nos é dada pela leitura de autores financiados pelos think tanks da direita americana (que parecem achar que tudo o que se seguiu à Revolução Francesa foi péssimo).

A propósito da escola democrática e da educação para todos, também se diz que ela é responsável pelo "fim dos costumes", etc. Mas este argumento é falso. Para além do retorno salarial que o prolongamento da escolarização e a obtenção de qualificação permite, estão ganhos sociais que não se reduzem à esfera económica. Assim, há vários estudos* que permitem defender com solidez bastante que o prolongamento da escolarização reduz a probabilidade dos jovens cairem em trajectórias de delinquência. Funcionando melhor ou pior, a escola é um espaço de socialização e de civilização que abre ou fecha oportunidades de vida a quem a frequenta. E tende a fechá-las a quem a frequenta por pouco, ou menos tempo que os outros. Para olhar para a anomia moral que tanto preocupa certos intelectuais, talvez fosse instrutivo olhar para os elementares variáveis sócio-económicas, mais estruturas ou contextuais.

O problema nestas discussões é, como sempre, o da visibilidade (e o seu inverso, o da miopia dos opinadores). Dantes, a violência e as incivilidades ficavam fora da escola, e como não havia televisão - e sobretudo não havia a tabloidização da televisão, dado que hoje qualquer telejornal das 8 parece querer concorrer com o "24 Horas" em alarmismo e demagogia -, os tinham os seus filhos na escola e não na fábrica, na rua, ou na prisão, achavam, naturalmente, que a escola era um espaço de formaçao de gentlemen (depois vamos ler os testemunhos biográficos das pessoas que frequentaram escolas de elite - e até há bem poucas décadas, isto era um pleonasmo - e vemos como isto é outro grande mito, mas isso é outra questão).

As instituições, quando bem desenhadas e apoiadas politicamente - isto é, quando não activa ou passivamente sabotadas por quem não está interessado no seu bom funcionamento - funcionam.
Invocar a 'natureza humana' é uma má desculpa para a ausência de boas políticas que constróem instituições funcionais, e continuar a achar que resolvemos algum debate recorrendo, pela enésima, a Darwin, Comte ou Rousseau é facilitismo intelectual. Mas, lá está, o conservadorismo, nunca se deu bem com as ciências sociais.

* Ver, por exemplo, Lance Lochner e Enrico Moretti, «The effect of education on criminal activity: evidence from prison inmantes, arrests and self-reports», in American Economic Review, 94 (1), 2004.

Okkervil River



Para ver se não se esquecem destes no Alive 2009, o tema "A Girl in Port".

Thursday, July 17, 2008

"Toca a chumbá-los!"

Um dos títulos de primeira página do "Público" de hoje é um verdadeiro programa de política educativa:

«Exames estão mais difíceis mas ainda acessíveis».

Conclusão: só exames inacessíveis é que são bons!

Obrigado, mais uma vez, pela transparência ideológica.

Tuesday, July 15, 2008

Sobre o endividamento das gerações futuras e outras questões

Uma das máximas do nosso tempo parece ser esta: «não endividirás as gerações futuras».
(curiosamente, muitos dos que estão preocupados com a dívida pública e com as obras 'faraónicas' preferem ignorar o nosso legado ecológico.)

Este raciocínio é perigosa e injustamente míope. Esquece que a solidariedade intergeracional é uma estrada com dois sentidos. Por ela não viajam apenas aquilo que os nossos filhos vão ter que pagar, mas aquilo que lhes deixamos – e que eles não produziram, mas vão usufruir. Estamos habituados a pensar desta forma em relação às famílias, mas a mesma lógica também se aplica às sociedades/economias nacionais.

Para sermos mesmo rigorosos e quisermos que uma geração não pague as dívidas contraídas pela geração anterior, então temos de ser coerentes e impedir que ela usufrua da riqueza criada no passado. Assim, cada geração tinha que destruir tudo o que construiu/produziu para evitar que a geração seguinte usufruísse das auto-estradas, escolas, hospitais, bibliotecas, museus, descobertas e aplicações científicas, etc. que construiu.

Naturalmente, não devemos ignorar que as gerações futuras pagam sempre um custo de oportunidade: se as políticas que uma dada geração desenhou e implementou forem más e ruinosas, será a geração futura a pagar as suas consequências; se elas tivessem sido mais inteligentes e eficientes, a geração futura obterá os seus frutos. O problema é que aqui entramos numa lógica contrafactual mais complicada: e se tivéssemos feito X ou não Y?

Depois, há coisas que não se pagam. Por exemplo, a geração que nasceu imediatamente a seguir ao 25 de Abril (escreve-vos alguém que nasceu em 1976) beneficia de um bem público para o qual não fez nada para obter: um regime democrático.

Thursday, July 3, 2008

Um pequeno segredo da "pujança" do capitalismo anglo-saxónico



Gráfico retirado daqui.

1929-1973

«Um dia adormecemos em 1929, no outro acordámos em 1973. Com os preços dos combustíveis e dos alimentos a subir», escreveu Rui Ramos no "Público" de ontem, quarta-feira.
Interessante visão da história. Interessante e muito selectiva. A minha preferida visão do que se passou entre 1929 e 1973 é mais ou menos esta.

Os quadros mostram a parcela de rendimento do decil mais rico num grupo de 6 países anglo-saxónicos e num grupo de 4 países europeus. Comparem os valores de 1929 com os de 1973.

Foi isto que se passou enquanto alguns andaram a dormir entre estas duas datas. Quando acordaram, procuraram imediatamente voltar para trás na história.

Os quadros estão disponíveis aqui, neste artigo de Anthony B.Atkinson e Thomas Piketty, "Towards a unified data set on top incomes", in Top Incomes Over the Twentieth Century : a Contrast Between Continental European and English-Speaking Countries, Oxford: Oxford university press, 2007, p. 531-565. [chap. 13].