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Thursday, June 12, 2008

O Estado social nas estratégias das esquerdas

Os últimos dias tem sido pródigos em escritos sobre as estratégias políticas da esquerda (Paulo Pedroso, Vital Moreira, João Rodrigues). Não vou entrar "de cabeça" no debate mas talvez valha a pena contribuir para ele de um outro ponto de vista menos óbvio e mais analítico.

Parto de uma constatação trivial: o Estado social só sobreviverá - ou, no nosso caso, só poderá expandir-se - com o apoio da grande maioria da população, o que se traduz numa configuração em que aquele traz benefícios à maioria (mesmo que diferencialmente distribuídos); e em que o seu recuo deixaria essa maioria a perder. É esta capacidade de responder a diferentes preocupações de diferentes grupos que pode sustentar o Estado social, mesmo que a sua legitimidade esteja assente mais no interesse individual do beneficiário do que num sentimento altruísta de solidariedade para com a sociedade.

É certo que, talvez mais mítica do que historicamente, o Estado social nasceu "à esquerda", mesmo que, com o tempo, se tenha alargado a todos (ou quase). Digo mais mítica que historicamente porque a diversidade de trajectórias que tiveram o seu início no fim do século XIX recomenda cautela a grandes generalizações - embora seja verdade que o modelo mais redistributivo, generoso e universalista tenha sido sem dúvida obra da esquerda social-democrata, na aliança entre o seu braço político (partidos com maioria parlamentar, absoluta ou não) e o seu braço sindical. Mas convém não esquecer que, cronologicamente, a primeira pedra do edifício foi lançada há cerca de 13 décadas na Alemanha pelo tudo menos progressista Bismarck.

Enquanto projecto construído - histórica ou miticamente - pela esquerda, o Estado social pôde, com a industrialização e a democratização das sociedades, ser aprofundado em boa medida pelo apoio do proletariado industrial, durante décadas a classe com maior peso eleitoral nas democracias ocidentais. Na maioria dos países europeus, hoje muito poucos destes pressupostos se verificam: nem o Estado social pode continuar a crescer sem controlo do ponto de vista orçamental, nem o proletariado industrial é um grupo demográfica e eleitoralmente maioritário, nem é o Estado social muitas vezes sustentado apenas pela esquerda, eleitoral ou governativa (embora também seja verdade que a direita tenha , probabilisticamente falando, mais tendências para se desfazer do legado histórico do que a esquerda)

Por outras palavras, o Estado social não tem, do ponto de vista eleitoral, um dono único que possa reclamar o seu indubitável monopólio - sendo que, como disse, em alguns países, é mesmo provável que isto nunca tenha sido assim de forma clara. Assim, a maior parte das despesas em protecção social vão para as pensões e para os sistemas de saúde - dispositivos que beneficiam a larguíssima maioria independentemente da sua lealdade ideológica, e que tendem a ser dificilmente reformáveis precisamente porque os que são os seus beneficiários actuais (bem como os seus futuros, aqueles que são mais jovens hoje) formam poderosos grupos de interesse em defesa do que são vistas como, e bem, conquistas históricas.

Por muitas dificuldades que estas configuração de apoio coloque à realização de reformas - tantas vezes necessárias - nos sistemas de protecção social, a existência destes grupos que têm uma lealdade a-ideológica ao Estado social - ou, se quiserem, um interesse pessoal na defesa dos seus benefícios - é provavelmente a melhor defesa contra o seu desmantelamento.

Uma das consequências disto é que uma esquerda que queira, ao mesmo tempo, defender, aprofundar e reformar o Estado social não ganha nada em se deixar embrulhar numa lógica discursiva que vê o Estado social como plataforma de resistência contra o "capitalismo", a "globalização" ou os "mercados". A maior parte das pessoas que defende os benefícios que o Estado social lhes trouxe não o faz contra o "neoliberalismo", contra os "patrões" ou contra a "tirania dos mercados". Defende-o porque este montou dispositivos que garantem alguma protecção e oportunidades de investimento individual e social, e porque aumentam o seu bem-estar - o que me parece perfeitamente natural, para além de legítimo (e, nalguns casos, defende-o mesmo porque vê neste um conjunto de alavancas institucionais para um crescimento económico potencialmente robusto e equitativo.)

O reforço da legitimidade do Estado social num mundo onde o proletariado industrial e a senso comum obreirista está ultrapassado passa por (de)mo(n)strar/explicar, política e pedagogicamente, às classes médias como e porque é que elas beneficiam (ou podem beneficiar), directa ou indirectamente, da protecção social. Nesse sentido, o Estado social - e os que os defendem e pensam - precisa de ter particular atenção ao que se passa ao centro. Uma fuga en masse das classes médias para o sector privado seria um sério golpe na sustentabilidade de um Estado social com serviços de qualidade.

Significa que um Estado social preocupado com as classes médias seria um Estado social mais residual? Mas então e o 'precariado', que ocupa uma espécie de no man's land, entre os pobres e a classe média estável - não trairia este maior residualismo as inquietudes legítimas de uma geração inteira? E não é este Estado social um edifício mais 'frio', despido de política e ideologia, e por isso incapaz de atrair mais apoios?

A resposta às 3 questões é: pelo contrário.

Primeiro, porque convencer o centro a entrar no Estado social só é possível aumentando a qualidade de serviços públicos universais; em caso contrário, as classes médias procurarão protecção no mercado privado. Segundo, porque essas mesmas instituições permitiriam responder às preocupações do tal precariado, dado que o acesso aos serviços públicos é, precisamente, independente daquilo que marca a sua condição precária: a dificuldade em estabilizar ligações contratuais sólidas e uma inserção durável no mercado de trabalho. Terceiro, que a linguagem de justificação do Estado social seja menos ideológica e politicamente quente está longe, nos nossos tempos, de ser um handicap. A maioria das pessoas não está interessada num Estado social que represente a "transição para o socialismo" (como representou para muitos durante várias décadas, na versão radical) que está em causa, nem sequer na "resistência ao capitalismo" (como representa para muitos hoje, na versão radicalmente conservadora). Se as políticas se decidissem em eleições onde o sufrágio estivesse limitado às elites intelectuais (e aos seus aprendizes e seguidores), para quem a política, as ideias e as convicções valem mais na sua vida mais do que a água para o corpo humano, este tipo de objectivos, estratégias e linguagem estaria sem dúvida apropriado. Mas o sufrágio é universal, e a maioria dos cidadãos pretende que a classe política encontre esquemas eficazes de protecção inteligente - não que se envolva em guerras teológico-políticas. As pessoas estão mais interessadas em saber como compatibilizar uma vida pessoal/familiar cada vez mais turbulenta com uma vida profissional cada vez mais competitiva; como ter condições para estabilizar uma relação pessoal, comprar uma casa, ser mãe e pai; onde deixar a criança quando se regressa ao trabalho; como evitar que a penalização por se decidir ser (sobretudo) mãe; como garantir os melhores cuidados aos pais idosos, etc., etc.. No fundo, como transitar entre pontos críticos da trajectória de vida sem cair em armadilhas de desqualificação, de pobreza, de desemprego, de inactividade, ou de descriminação face a colegas, mantendo baixos níveis de desigualdade que são os mesmos, afinal, que mantêm elevados índices de competição (e quem disse que a igualdade é sempre má para a competição?) e de qualidade.

Coisas pequenas quando comparadas com o universo intelectual dos grandes ideólogos, portanto. Aquelas pequenas coisas que enchem a vida das pessoas.

Resumindo, e independentemente da questão de que-esquerda-tem-que-se-virar-para-que-lado, um Estado social que não seja capaz de convencer, conquistar e incluir o centro será sempre um dispositivo institutional frágil. Agora atenção: convencer o centro não implica seguir políticas centristas. Implica antes perceber como é que o centro pode ser convencido que políticas de esquerda podem servir-lhe (o que é mais difícil do que parece). Mas também implica outras coisas: que se proponham/conduzam estratégias discursivas e políticas que não se dirijam, mesmo que implicitamente, apenas a pequenos nichos eleitorais; que se perceba que esse centro, ele próprio um conjunto de diferentes "centros", vive e pensa de forma diferente dos tais nichos, e que tanto o discurso como as políticas que procuram responder às preocupações desta maioria heterogénea devem ser inteligentes e não populistas, financeiramente sustentáveis/responsáveis e não segundo a lógica do toujours plus!, e guiadas pelo melhor que as políticas públicas nos podem dizer sobre o mundo e não pelo "ideologicamente correcto" misturado com a ignorância das tendencias empíricas mais elementares.

Falta o mais importante, talvez, à esquerda.

Implica que aceitemos que 'socialismo' e 'social-democracia' são, enquanto estratégias económico-políticas, coisas diferentes. Implica que o Estado (pós-)industrial deve consumir menos recursos que o Estado social. Implica que o objectivo da conquista dos meios de produção deve ser substituída pela optimização dos meios de redistribuição. Implica que aceitemos a destruição criativa Schumpeteriana, sempre complementada e compensada por formas de redistribuição criativa. Implica que se aceite a legitimidade da economia de mercado enquanto mecanismo (não-absoluto!) de coordenação societal, que pode e deve alimentar um capitalismo de bem-estar.

E implica - por fim, mas que condensa o essencial - que a luta pelo Estado social e contra as desigualdades não seja uma estratégia entrista para relançar, pela calada da noite, o mítico "socialismo".

Enquanto estas desconfianças da parte da esquerda-que-não-pode-alienar-o-centro em relação à esquerda-mais-interessada-em-não-alienar-a sua-própria-identidade-e-património-simbólico (e, já agora, o seu nicho eleitoral...), se mantiverem, qualquer acordo será sempre difícil.