Friday, December 7, 2007

Uma pequena contribuição para o "debate da esquerda"

O Miguel Madeira já tentou reconstituir a ordem cronológica de uma discussão para a qual fui contribuindo de forma muito dispersa em caixas de comentários de outros blogues. Talvez faça sentido dizer algo mais sustentado aqui.

Vou cortar a discussão para afirmar o que me interessa dizer, mesmo que isso diga pouco sobre alguns dos temas que vieram entretanto ao de cima. Estas discussões são sempre tão animadas como frustrantes, e eu chego sempre ao fim a perguntar porque me meto nelas. Mas cá vai: queria escrever alguma coisa sobre um dos que me parece ser um (o?) problema de muitas das coisas escritas à esquerda por gente com qualidade (e até alguma experiência de militância política).

Talvez o problema elementar seja a excessiva ideologização dos pontos de partida, que depois impregna os termos e conteúdos das discussões. É óbvio, por um lado, que não há posição política sem ideologia; por outro, quando esta se resume a um contínuo reshuffle histórico de temas e palavras velhas, e não é disciplinada por outras forças intelectuais, a ideologia torna-se preguiçosa, oca e dogmática, e tem tendência a protelar o uso de significantes que já ninguém conhece muito bem o significado e alimentar lutas fratricidas entre 'puristas' e 'traidores'. Torna-se uma conversa de seita, fechada a quem ela não pertence, sem qualquer relevância para além deste círculo. Pode ser sem dúvida excitante, mas a sua relação com a actividade política que procura ter impacto na vida das pessoas é irrelevante.

Como combater o excesso de ideologia? Num dos comentários que escrevi, propus uma dupla estratégia. Uma abertura da reflexão ao lado da filosofia política, por um lado, e ao lado das ciências sociais, por outro. A filosofia política obriga-nos a pensar as coisas os nossos princípios do princípio, e de forma clara e analítica, enfrentando escolhas morais e intelectuais difíceis (e para isto é preciso seriedade). O que defendemos, afinal? Como hierarquizamos os diferentes valores que queremos defender ou escolher quando estamos perante um dilema? Isto é absolutamente central porque, em primeiro lugar, a esquerda gosta de se dizer defensora da 'liberdade', 'igualdade' e 'fraternidade' ou 'solidariedade', etc. sem que muitos pareçam pensar num minuto que um avanço em direcção a um vértice do triângulo (ou quadrado, ou qualquer que seja a figura geométrica) pode significar a aumentar da distância em relação a outro (por ex., mais igualdade pode significar um decréscimo de liberdade). Em segundo lugar, isto é importante por motivos empíricos: ao contrário do que aconteceu na maior parte da Europa e nos EUA, o Estado deixou de poder prosseguir políticas de expansão em certos sectores-chave (o que não significa necessariamente recuo; pode significar estagnação, estagnação pode muitas vezes significar melhor gestão), e isso significa que há menos recursos para distribuir por mais grupos, alguns mais reivindicativos (ou bem organizados) do que no passado. Menos recursos para mais procura social só pode dar mais descontentamento, e por isso maior necessidade de definirmos os princípios que nos levam a distribuir o recurso A (mais escasso hoje do que no passado) pelo grupo X (e não pelos grupos Y ou Z).

As ciências sociais, não sendo propriamente a "física" das sociedades (coisa que nunca serão), disciplinam a nossa forma de pensar e tentar perceber como o mundo funciona, algo que a reflexão ideológica obviamente abomina (é uma chatice quando o mundo não funciona da forma que queremos). O trabalho na economia, na sociologia, na ciência política, tanto de cariz quantitativo como qualitativo (embora admita a maior centralidade do primeiro), é essencial para as visões mais politizadas do mundo aprenderem a ganhar um pouco de humildade e a saírem do wishful thinking. É essencial também para sabermos a exequibilidade, utilidade e eficácia das políticas públicas. As pessoas elegem representantes políticos para lhe resolverem os problemas - quando acreditam que isso é possível… -, não para andarem a discutir questões sobre o que é, efectivamente, da ordem da "meta-política". E para resolverem os problemas, os intervenientes políticos precisam de saber o que funciona e o que não funciona, o que é inteligente e/ou viável e o que é estúpido/inviável. Dizer que o 'ideologicamente correcto', código genético do qual muitos não parecem conseguir separar-se, pode tantas vezes degenerar nas decisões políticas estapafúrdias é uma banalidade. Ou melhor: devia ser uma banalidade. Ao ler o que muitos escrevem, pergunto-me se alguma vez pensam nisto.

A direita, claro está, percebeu isto há muito tempo. Explorou, ao nível da filosofia política, as avenidas do libertarismo e tirou as devidas consequências ao nível das políticas públicas, do policy mix ideal entre o Estado e o mercado, e mobilizou/estimulou o conhecimento produzido por economistas e cientistas políticos para perceber como funcionavam ou podiam funcionar as instituições para colocar carne empírica no seu esqueleto normativo. Enquanto muitas à esquerda ficaram a gritar contra o “neo-liberalismo” (real ou fantasmagórico), a direita mobilizou princípios e estudos para sustentar e justificar as suas políticas.

Já sei o que alguns vão dizer: para pegar na metáfora usada pelo Zé Neves, que estou a fazer de fiscal-de-linha e a meter uma série de gente fora-de-jogo. A verdade é que é quem acha que este campo tem uma dimensão e regras excessivamente limitadas tem que provar porque é que reflexões “meta-políticas” devem ser levadas a sério por aqueles que, à esquerda, concebem a política como uma actividade cujas intervenções têm como FIM ÚLTIMO E ESSENCIAL resolver os problemas das pessoas e ajudá-las a levar uma existência decente. O ónus recai, efectivamente, sobre essas pessoas e os seus argumentos. O resto pode ser muito interessante, ocupa certamente mentes brilhantes, produz livros que fazem história, gera horas inesquecíveis de discussão, mas, em tempos de urgência política - e há algum que não o seja? - isto é um luxo. Talvez noutros tempos este fosse chamado um luxo burguês. Mas luxo apenas está bastante bem. Quem o pratica ou dele usufrui, não tem que escondê-lo nem ter dele vergonha. Bastaria que pensasse nisso um pouco, e talvez não o fizesse mal assumir.

O resultado deste meu “pragmatismo”, como imagino que muitos digam, não leva ao "fim da política", nem ao "fim da ideologia", nem os chavões do costume. Significa levar várias coisas a sério antes de se começar a pensar de forma adulta sobre política: por exemplo, os constrangimentos colocados pela economia (capitalista ou outra; e convém não esquecer que a escassez é maior no socialismo do que no capitalismo), pela democracia (é uma chatice, isto das pessoas terem que votar ou concordar com as propostas políticas de uns quantos, ou pelo menos eleger alguém com um programa político dado) e uma série de outros direitos que ainda muito gente parece ainda não levar suficientemente a sério (como os direitos de propriedade, que não sendo nem ‘absolutos’ nem’ naturais’ como a direita gosta de dizer, muita gente ainda raciocina como se eles não existissem para a definição de uma estratégia ou de uma política dada). A discussão é tantas vezes tão difícil - nem chega a começar, realmente - porque muitos à esquerda parecem esquecer-se de alguns de alguns "pormenores" que outros take for granted (ou consideram, pelo menos, que não podem ser convenientemente varridos para debaixo do tapete): que certas políticas ideologicamente correctas seriam um desastre económico (que levaria muitos, convenientemente, a culpar pela milésima vez o 'capitalismo' quando deviam culpar a incompetência criminosa de quem lançou as políticas); que seriam impraticáveis numa democracia, em particular num país relativamente próspero, com uma classe média robusta, que coloca o eleitor mediano completamente a leste dos delírios de alguns e que votaria, obviamente, contra (a alternativa, claro, é iniciar uma revolução contra estes eleitores e os outros mais ricos: any candidates? se sim, que ponham o dedo no ar para se saber o que as pessoas, lá no fundo, defendem, era pelo menos mais transparente e honesto); e que seriam altamente dúbias do ponto de vista do respeito mínimo dos direitos de propriedade, e aqui a filosofia política serve precisamente para podermos pensar e justificar o que é que é de um (bens privados), de poucos (club goods), ou de todos (bens públicos).
Ignorar este tipo de constrangimentos - adicionem outros, não quis ser exaustivo – não é ficar, num qualquer lance da partida, e por alguns milímetros, fora-do-jogo; é simplesmente nem sequer entrar no relvado por discordância ou ignorância/negação deliberada das regras da modalidade. Faça-se um esforço para conceber, como escrevi em cima, a política como uma actividade cujas intervenções têm como FIM ÚLTIMO E ESSENCIAL resolver os problemas das pessoas e ajudá-las a levar uma existência decente, e talvez se perceba porque escrevo o que escrevo sobre a estratégia da "negação" (sem querer abusar da psicologia política...). Não pretendo ser paternalista; pretendo apenas constatar o que, pessoalmente, me parece uma evidência.

P.S.- É claro que isto é um exercício estúpido: como se o problema da negação se resolvesse pela discussão racional. Há formas de estar na e pensar política que são modos de vida, e contra modos de vida não há discussão racional que sirva para demonstrar o que quer que seja; por isso ignoram-se os problemas e as questões difíceis para reduzir o choque axiológico e psicológico que mudanças de perspectiva neste plano produziriam. Por isso, muitos só mudam de opinião depois desses choques violentos, por vezes evitáveis, e nunca pela discussão racional.

2 comments:

Praça Stephens said...

boa reflexão sem dúvida, rendido que está a uma política de resultados. Ok, não discuta isso, porque tb sou aceito a política de resultados. Já agora no conjunto do que disse gostava que comentasse se a este governo falta doutrina (doutrina fica a meio entre ideologia e pragmatismo), já que o seu porta voz, vitalino canas, veio dizer que à medida que o país melhorasse as políticas de esquerda teriam mais visibilidade, ou seja, interpretando as palavras dele, com políticas de direita endireita-se o país, com políticas de esquerda dão cabo dele ;)

JPP

Hugo Mendes said...

Se falta "doutrina" a este governo? Estou de acordo, falta trabalhar muito nessa área, sim. É preciso um trabalho de refundação ideológica no Partido Socialista e de reflexão/definção colectiva de uma série de princípios e estratégias para o futuro - para que a des-ideologização não redunde no mero pragmatismo.

Resta saber se isso é possível. No Reino Unido, o New Labour fez isso, reinventando um bocado a roda e chamando-lhe "terceira via". Independentemente do resultado desse trabalho - que continua -, e não acho que seja "grande espingarda", houve efectivamente uma mobilização intelectual de parte da esquerda para perceber como se podia voltar ao poder com algumas medidas de matriz social-democrata. Não sei se em Portugal existe massa crítica e vontade para reunir os meios para fazer isso. Mesmo para importar ideias isto funciona mal, quanto mais para criar...Mas não sou catastrofista, creio que alguma coisa vai acontecer nesse campo.