Monday, July 2, 2007

Notas sobre o debate do "Le Monde Diplomatique" e outras reflexões (I)

1. Comecei por dizer, de forma provocatória, o que já tinha escrito aqui: que, dado o défice de qualificações da grande maioria dos activos portugueses, a estratégia mais apetecível e fácil, do ponto de vista económico, é assumir que a nossa mão-de-obra deve, num contexto de competição crescentemente global, "vergar-se" aos seus défices de qualificação e produtividade (muito longe da média da UE...), e assumir que a única estratégia possível de desenvolvimento passa pela estagnação (ainda maior) dos salários e uma massiva desregulação do mercado de trabalho, o que abanaria a economia, e obrigando as empresas "incapazes" a abrir falência. O desemprego subiria, sim, mas o ajuste levaria a que as pessoas não tivessem outra alternativa senão ajustar-se às transformações futuras do mercado de trabalho desregulado, aceitando qualquer emprego - hiperflexível, mal remunerado, etc. - num sector de serviços em crescimento. A prazo, o desemprego desceria, sim, mas com um custo brutal de aumento das desigualdades e dualização da sociedade. Esta é a conhecida por estratégia anglo-saxónica, assente em que tudo o que é low: low skills-low wage-low regulation.
Esta não é, obviamente, a única estratégia possível, e não é a estratégia a ser seguida pelo actual Governo. A outra grande alternativa é qualificar a população, recuperando o tempo perdido, e atrair investimento, promovendo a mudança da estrutura ocupacional (que é, em Portugal, ainda muito diferente dos países mais prósperos da UE), e fazendo pequenos ajustes na legislação laboral (quem acha que a discussão actual sobre a "liberalização dos despedimentos", etc., é a expressao do neo-liberalismo, nao faz a mínima ideia do que é um mercado laboral regido pelo dito "neo-liberalismo", e de quão longe estamos dele, e de como a nossa legislação produz situações perversas para os trabalhadores - precisamente aqueles que a lei devia proteger. Mas alguém está disposto a discutir isto seriamente?!). Ainda há muitos avanços a fazer na transformação da nossa estrutura económica em direcção a um modelo cujo motor passe a ser o trabalho qualificado no sectores mais dinâmicos da economia de serviços e do conhecimento. Esta estratégia é, também, mais morosa do que a anterior, e isso é fundamental que as pessoas percebam: porque não implica nenhum "choque", mas um - mesmo que robusto - incrementalismo, ela tem que ser avaliada pelos frutos que permitirá a longo prazo, e pela capacidade que tem de colocar o país numa trajectória de crescimento sustentado. De nada vale a pena crescer um ou dois anos se a estrutura económica do país ficar na mesma e voltarmos aos mesmos problemas logo a seguir. Por isso é preciso esperar. E para esperar é preciso paciência. E para ter paciência é preciso ter confiança: confiança individual, por um lado, e confiança institucional por outro, em particular por parte dos parceiros institucionais que devem levar a sério uma estratégia de desenvolvimento cujo sucesso passa também pelo seu envolvimento activo nela. O clima de constante guerrilha institucional não traz benefícios para ninguém, tirando, claro, os populistas de esquerda ou direita, que verão no aumento do descontentamento generalizado uma oportunidade para aumentarem a sua quota eleitoral, subindo mais uns pontitos percentuais. Nesse sentido, a "estratégia do quanto pior, melhor", que faz parte da tradição política de uma certa esquerda, continua a ter uma actualidade perene.

2. Suponho que as pessoas não tenham gostado da minha redução das estratégias de desenvolvimento a duas opções. É legítimo, mas a incapacidade de propor estratégias alternativas é confrangedora. No campo da esquerda populista, sem qualquer vocação de Governo e que nunca o terá que exercer - o que é um convite à mais pueril irresponsabilidade política -, continua-se a eleger a "iniciativa privada" e a falar da "economia" e das "empresas" como se não vivêssemos numa economia de mercado, como se a maior parte da população não estivesse nela empregada, e como se os serviços que a maior parte dos aderentes da esquerda populista dispôs ao longo da sua vida - escolaridade gratuita ou saúde tendencialmente gratuita, já para não falar das transferências sociais que completam a estrutura do Estado social - não fossem pagos pelo mesmo "mercado". Há alturas em que eu percebo - sem, naturalmente, concordar - a força que o pensamento de direita ganhou em certos círculos, tornando-se verdadeirmante dogmática e anti-esquerda: é com tanta má fé, tanta denegação, tanta incapacidade para olhar certos factos elementares de frente (o que, vindo por vezes de cientistas sociais, me deixa francamente perplexo) tanta incapacidade para perceber como o Estado só tem dinheiro para pagar o que achamos que deve pagar (e que é, tem de ser, finito, e por isso inteligentemente limitado e definido) se conseguir colectar os impostos que derivam dos lucros produzidos pela tal infâme "iniciativa privada", etc. etc., é natural que à direita se ache que a esquerda que não faz mais nada que dizer mal do "mercado", etc., deve ser denunciada de "parasita".

3. Esta forma de não pensar o mundo actual leva a que a esquerda populista, que adora dizer que tudo o resto é de "direita", esteja completamente ausente do debate político concreto, da discussão de ideias para o futuro, da proposta de soluções, etc.. Porque recusa tudo ou quase tudo que se faz (tudo é de "direita") ou porque tudo é um "compromisso" e um "desvio" ("social-democrata" ou outro), esta esquerda entrega, num acto verdadeiramente suicida, o espaço do debate em torno das opções estratégias de policy à direita e à esquerda social-democrata. A sua posição define-se por ser do "contra" o "neo-liberalismo" e o "capitalismo" e etc., sendo que estas categorias, repetidas até à exaustão, funcionam como etiquetas e "marcadores tribais" e nunca como conceitos que devem ser definidos e sujeitos a um "reality check" (o que, repito, quando falamos de cientistas sociais, me parece grave). As eventuais propostas realizadas estão tão longe da realidade e são, na maior parte, e enquanto eventual modelo de desenvolvimento alternativo, tão impossíveis de colocar em prática, que não merecem na maior parte das vezes levadas a sério. E porque não são levadas a sério, não são discutidas por ninguém no espaço público, nem nunca farão parte de nenhum programa político capaz de convencer o eleitorado - o que, em democracia, é, no mínimo, se me é permitida a ironia, um pequenino handicap.

Depois volto a outras questões levantadas no debate e a outras reflexões laterais.

P.S. - Já o disse em resposta ao Carlos Leone na caixa de comentários deste post, mas para que fique claro - e o Renato Carmo chamou-me a atenção para isto, penso que é perfeitamente justo -, a minha saída do Peão nada tem a ver com o que se passou no debate - que, reafirmo, foi cordial e interessante, mesmo que previsível q.b. -, até porque quando falo de "esquerda populista" neste post não me estou a referir a nenhum dos membros activos do Peão. Para quem não restem confusões, era importante esclarecer este ponto.

3 comments:

CLeone said...

Presumo portanto que o debate tenha sido a gota de 'agua que me deixa literalmente isolado no Peao... to bad, este post merecia estar no ladob. Mas aqui tambem esta' muito bem.

Hugo Mendes said...

Olá Carlos, não, por acaso não foi, de todo. O debate foi civilizado, se bem que previsível na ronda de argumentos. O resto já te explico por mail :)

João Vasco said...

Bem, o "Peão" terá ficado certamente mais pobre...