Wednesday, November 21, 2007

Da superioridade moral do socialismo


Ainda não completamente refeito do impacto desse exquisite documentário que é "Sicko", de Michael Moore - e que merece uma resenha mais alongada mais tarde -, para já só me apetece dizer isto: perante a propaganda produzida nos EUA contra a ideia de um sistema público e universal de saúde (sobre o que isso implicaria em termos da "estatização da medicina", etc.), entre as muitas inverdades e exageros que se dizem/escrevem, há uma coisa que é verdade, sim: um sistema público e universal de saúde é uma construção segundo princípios socialistas, onde vigora o princípio da igualdade independentemente dos rendimentos, qualificações, estatuto social, etc., e onde cada um paga em função das suas possibilidades e recebe cuidados em função das suas necessidades. Perante as situações hediondas que Moore mostra no filme (atenção: em todos os sistemas há situações hediondas - mas há uma enormíssima diferença entre a situação hedionda que viola profundamente os princípios do sistema (e que por isso deve ser corrigida), e a situação hedionda que decorre natural e inevitavelmente desses mesmos princípios), apetece mesmo dizer: não apenas um sistema público e universal concretiza princípios socialistas, como serve de clara demonstração do que noutros tempos se chamava, pomposamente, a "superioridade moral do socialismo". Já não há assim tantas instituições que consigam mostrar isto, mas esta é uma delas.

3 comments:

CLeone said...

A superioridade moral era dos comunistas. E para o socialismo ter moral para falar de cima para baixo ao modelo americano (impróprio de uma sociedade decente, de acordo), convém prestar atenção ao que fazem por ca as seguradoras. E para isso o Moore não serve (se serve apra o resto tb seria matéria de discussão, diz este adepto do Bowling for Columbine).

Hugo Mendes said...

Não está em causa que as nossas seguradoras - residuais em termos de cobertura de necessidades do mercado - sejam "melhores" ou "piores" que as do outro lado do Atlantico; o que está em causa é a diferença entre um modelo baseado em seguradoras e outro baseado num serviço público que responde em função da necessidade e não do padrão de risco do paciente. As seguradoras norte-americanas não são más: fazem o que a lógica de mercado manda. Nesse sentido, são altamente profissionais. A questão central é se este profissionalismo se compadece com a problemática da saúde. Para utilizar o termo que o Carlos usou, dar espaço a que este profissionalismo condicione o acesso a tratamentos não é próprio de uma sociedade decente (já nem entro numa questão de justiça; acho que a decência vem, em termos filosóficos, antes da justiça).

O filme de Moore supreendeu-me pela positiva porque capta o essencial das diferenças entre os sistemas, mesmo que aqui e ali exagere sem necessidade (a ida a Guantanamo era completamente desnecessária), e mesmo que pinte uma imagem excessivamente positiva dos sistemas canadiano, ingles ou frances. Mas a realidade é que, ao contrário de "Fahrenheit 9/11", que é baseado em larga medida em especulação, este filme é apenas o outro lado de uma realidade que as estatísticas e estudos aprofundados representam facilmente. É esta uma das forças do filme: ninguém pode vir dizer que se tratam de casos isolados, ou excepcionais, que distorcem a realidade, etc.

E, pelo meio, todos ficamos a perceber porque é que os EUA nunca, provavelmente, vão ter um sistema público de saúde. E como a corrupção grassa ao nível do Congresso. Esta é alias uma temática que merece ser tratada lá mais para a frente, quando as eleiçoes americanas se aproximarem. A situação é tão grave que uma mão cheia de filósofos ou cientistas políticos norte-americanos - que hardly podem ser considerados anti-americanos ou radicais - de renome
(Ronald Dworkin, Robert Dahl [arqui-rival dos proto-marxistas nos anos 50 e 60], Bruce Ackerman, ou Cass Sustein) têm vindo a escrever as patologias inscritas num sistema onde a lógica do "one head-one vote" abafa por completo a do "one dollar-one vote", que é afinal a essencia da lógica democrática (e a distingue da lógica de mercado), e o que devia ser feito para repor um pouco de igualdade.
Mas isto é tema para outras, futuras discussões.

CLeone said...

Pois, a aprte final está um pouco carente de desenvolvimentos, cá os espero.
Sobre a sociedade decente, estamos de acordo, claro. E pelos vistos tb sobre o Sicko, melhor que o filme sobre o Iraque, apesar de tb um pouco mistificador (sobre Cuba ou França, é só escolher).